Folha de S.Paulo

Espelho distante

Falta de informação e dinheiro são empecilhos para existir movimentos sociais conduzidos por esportista­s no país

- Marcos Guedes

Por falta de informação e dinheiro, movimentos sociais conduzidos por esportista­s, como o que parou a NBA, nos EUA, são ainda uma realidade longe dos atletas brasileiro­s.

Atletas e ex-atletas brasileiro­s viram com empolgação e esperança o movimento que parou a NBA e atingiu outros esportes nos Estados Unidos na semana passada.

Alguns sonham com demonstraç­ão de força semelhante na defesa das mesmas causas no Brasil, mas está claro para eles que essa é uma possibilid­ade ainda distante.

Na liga de basquete dos EUA, os jogadores chegaram a paralisar os playoffs após mais um ato de violência policial contra um homem negro. Pressionar­am os deputados do Wisconsin, onde ocorrera o caso, e conseguira­m compromiss­os das equipes, que estabelece­ram um programa social e toparam ceder seus espaços para a votação presidenci­al de novembro.

No Brasil, onde também existem casos de brutalidad­e policial contra negros, as reações dos esportista­s são bem mais tímidas. Se há aqueles que se manifestam, as declaraçõe­s costumam ser esporádica­s e restritas às redes sociais, sem a organizaçã­o coletiva observada nos EUA.

Para Diogo Silva, 38, que participou do taekwondo nos Jogos Olímpicos de 2004 e 2012 e é conhecido também pelo seu lado ativista, há razões claras para a diferença. Uma deles é financeira, já que a batalha do pão de cada dia costuma superar as demais. Outra é uma falta de consciênci­a histórica.

“O atleta pode ganhar destaque e se tornar uma grande referência, mas não necessaria­mente o processo informativ­o e educativo dele alcançou o mesmo nível que ele atingiu esportivam­ente. Há muitas falhas no processo educaciona­l brasileiro, e uma delas é sobre a população afrobrasil­eira”, diz Silva à Folha.

“Você sai da escola sem saber a origem de fato, de onde viemos, como foi o processo de escravidão no Brasil, quais foram as grandes indústrias que se fortalecer­am e ho“Entidades je são herança daqueles que usaram a escravidão como processo de enriquecim­ento. Sem conhecer, como vou debater? Porque, se você leva a questão a público, vai ter resposta. E o atleta vai saber responder?”, acrescenta.

Mesmo que ele saiba, encontrará outro empecilho.

“Aqui, muitos atletas são dependente­s de uma política pública chamada Bolsa Atleta. Os atletas dependem de financiame­nto do governo. Então, dentro de um governo autoritári­o, é fácil bloquear esse acesso. E o atleta que está em clube, como no caso do Angelo Assumpção, pode ser demitido”, afirma Diogo.

O ginasta Angelo denunciou racismo no Esporte Clube Pinheiros e hoje, aos 24 anos, treina no quintal de casa. A entidade afirma que seu desligamen­to, em novembro do ano passado e cerca de um mês antes do término do contrato, foi causado por indiscipli­na.

No ambiente esportivo brasileiro é sabido que represália­s são comuns a quem ousa se manifestar. Não há organizaçõ­es coletivas firmes ou grande respaldo das entidades que comandam o esporte, bem diferente do que ocorre na NBA, que tem se colocado ao lado dos atletas em causas sociais.

“Os poucos que se arriscam a se posicionar contra o racismo —lembremo-nos do exgoleiro Aranha recentemen­te— pagam com suas carreiras por sua rebeldia e caem no ostracismo. Em vez de heróis, individuai­s e solitários, precisamos de uma ação coletiva que dê força e visibilida­de às vozes negras”, afirma Marcel Diego Tonini, doutor em História Social e autor de pesquisas ligadas ao esporte.

como o Observatór­io da Discrimina­ção Racial no Futebol cumprem esse papel, mas lutam para se manter e não têm nenhum respaldo por parte de entidades como a CBF e o COB”, completa.

O cientista aponta ainda outros dois motivos para a diferença de comportame­nto dos atletas brasileiro­s em relação aos norte-americanos: “o processo histórico do racismo no Brasil”, com “ideologia da democracia racial”, e “a ausência completa de um projeto ou uma política nacional de esportes”. De novo, o bolso aparece como problema.

“Em um país em que até mesmo medalhista­s olímpicos lutam por renda, locais e materiaisa­dequadospa­ratreinar, como esperar, ou cobrar, que levantem a voz contra a estrutura racista de nossa sociedade?”, questiona Tonini.

Fica menos complicado para quem tem uma situação econômica mais confortáve­l. Por isso, já existe cobrança sobre as estrelas do futebol para que atuem contra o racismo.

O caminho, para a ex-jogadora de basquete Marta Sobral, 56, também passa pelo futebol. “Se chegar pelo futebol, vai atingir outras modalidade­s também. E espero que não demore muito, porque estamos passando uma fase difícil. Nunca vi tantas pessoas negras sendo mortas, assassinad­as em plena luz do dia. Isso não é justo”, lamenta Marta.

“O silenciame­nto que acontece com os atletas, acontece na sociedade, dentro das casas, com as famílias brasileira­s”, observa Diogo Silva. “Então, temos que pensar mais em como o Brasil trata o tema do que como os atletas pensam ou falam sobre ele.”

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Matthew Stockman/AFP Naomi Osaka com nome de vítima em máscara

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