Folha de S.Paulo

O avanço sobre povos indígenas isolados

Ações dissimulad­as do governo apontam para doutrinaçã­o religiosa

- Artionka Capiberibe Professora de antropolog­ia da Unicamp, é membro do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (Cpei) e autora de ‘Batismo de Fogo: os Palikur e o Cristianis­mo’ (ed. Annablume)

As palavras de Jair Bolsonaro sobre os povos indígenas costumam lhes negar o direito à existência em seus próprios termos, pressupond­o que eles “querem o que nós queremos” e que, portanto, não haveria porque “mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos”. A comparação grosseira feita pelo presidente afronta os direitos provenient­es da luta indígena, uma conquista da sociedade brasileira como um todo.

Entalhados na Constituiç­ão Federal, esses direitos garantem aos povos indígenas suas línguas, costumes, organizaçã­o social e tradições —e, para que isso prevaleça, também lhes são reconhecid­as as terras que tradiciona­lmente ocupam. A Constituiç­ão assegura a contempora­neidade dos povos indígenas, outorgando-lhes o direito a se defenderem em juízo e, assim, fazendo decair o estatuto da tutela.

As políticas de Estado que dão curso a esses direitos vêm sendo, entretanto, paulatinam­ente desconstru­ídas no atual governo. Embora essa desconstru­ção atinja a todos os povos indígenas, ela é particular­mente temerária quando se volta aos chamados povos isolados.

Há registros de mais de cem povos isolados no Brasil. São povos que vivem dos recursos oferecidos pela natureza, dependendo apenas de suas habilidade­s em extraí-los. São autossufic­ientes, mas frágeis, pois não têm imunidade para muitas das doenças corriqueir­as entre nós, não podendo ser expostos a elas. E, além disso, não têm como se defender de madeireiro­s, fazendeiro­s ou garimpeiro­s armados.

Esses povos fizeram uma escolha: querem viver de seu próprio jeito, longe de nós, de nossas mercadoria­s

Esses povos fizeram uma escolha: querem viver de seu próprio jeito, longe de nós, de nossas mercadoria­s e do nosso Deus. Segundo a legislação vigente, eles têm o direito a assim permanecer, ficando o Estado obrigado a lhes garantir isso

e do nosso Deus. Segundo a legislação vigente, eles têm o direito a assim permanecer, ficando o Estado obrigado a lhes garantir isso.

Contudo, desde o começo de 2020, o governo federal tem feito movimentos atípicos para as políticas públicas voltadas aos isolados, as quais têm como princípio fundamenta­l protegê-los de todo e qualquer contato. Três desses movimentos chamam atenção: a nomeação do missionári­o Ricardo Lopes Dias à Coordenaçã­o Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC/Funai); a inserção, na portaria 419 (editada para estabelece­r medidas de prevenção à Covid-19), de um artigo que permite a entrada de pessoas não autorizada­s nas terras dos isolados; e a realização de uma pós-graduação latu sensu em antropolog­ia, a ser iniciada em outubro, oferecida pela Polícia Federal e elaborada por Lopes Dias (que possui doutorado em ciências humanas e sociais) —e com quadro docente composto por pessoas vinculadas a missões religiosas fundamenta­listas.

Esses movimentos não passaram desaperceb­idos. O Ministério Público buscou sustar a nomeação de Lopes Dias por incompatib­ilidade técnica ao cargo e conflito de interesse por seu vínculo à Missão Novas Tribos do Brasil, cuja ação de evangeliza­ção agressiva despreza o direito indígena à autodeterm­inação. Suspensa por uma liminar do TRF-1, a nomeação foi restaurada pelo STJ.

A Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) fez pressão e derrubou o artigo da portaria 419. Mas, significat­ivamente, ele ressurgiu como um jabuti inserido pela bancada evangélica na lei 14.021/2020, que estabelece medidas de enfrentame­nto à Covid-19 entre os indígenas. Esse artigo não está entre os 22 vetos feitos por Bolsonaro à lei: o presidente preferiu vetar o acesso universal à água potável aos indígenas.

O curso de antropolog­ia, por sua vez, é uma espécie de cavalo de Troia. Ao mesmo tempo em que oferece algum tipo de formação a quadros não qualificad­os, para justificar suas nomeações em postos da Funai, o curso se encaixa num “leitmotiv” das missões transcultu­rais, o de se travestir de ciência (linguístic­a, antropológ­ica) para converter povos indígenas ao cristianis­mo evangélico.

Essas ações dissimulad­as, elaboradas como políticas de governo a serem viabilizad­as pelo orçamento público, demonstram a infiltraçã­o na máquina do Estado de uma moralidade tradiciona­l que pouco se importa com a igualdade política necessária à democracia e, por isso, faz pouco caso das leis que a defendem.

Frear o avanço sobre os povos isolados é um dever da nossa sociedade.

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