Folha de S.Paulo

Punitivism­o estrutural

Prisão no Brasil não pode ser utilizada como vingança e antecipaçã­o de pena

- Augusto de Arruda Botelho Advogado criminalis­ta, é conselheir­o e ex-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Vamos direto ao ponto: o punitivism­o é estrutural em nosso país. A maior parte da população, da imprensa e especialme­nte do Judiciário quer, cada vez mais, que pessoas sejam presas.

No Brasil, há um grande número de presos provisório­s, ou seja, sem condenação definitiva. Em alguns estados, entre as mulheres, esse número ultrapassa os 50%. É evidente que isso se trata, e hoje já nem mais podemos dizer que veladament­e, da antecipaçã­o de uma condenação. Para muitos, prisão é vingança, e a vingança é um sentimento imediato. Portanto, para esses, que prenda-se logo.

Não há outra explicação para a situação do nosso sistema penitenciá­rio que não essa. Explico: todas as composiçõe­s que julgam matérias criminais em nossos tribunais superiores —as turmas do STJ e do STF— afirmam, diariament­e e de forma unânime, que a prisão preventiva não pode ser decretada com base na gravidade abstrata de um crime e que para prender alguém antes da sentença é necessário que sejam apontados fatos e atos atuais e concretos.

Na prática, vemos justamente o contrário. Grande parte dos juízes de primeira instância e desembarga­dores dos tribunais de Justiça decretam e mantém prisões preventiva­s pelo crime de roubo, por exemplo, afirmando se tratar de um crime grave e que o acusado em liberdade poderá voltar a delinquir.

Não menosprezo a gravidade do ato de roubar, ao contrário, mas trata-se de usar a gravidade abstrata de um crime para prender antecipada­mente. Dizer que uma pessoa em liberdade poderá voltar a delinquir (e aqui o tempo verbal deixa essa intenção clara) é fazer uma conjectura. Com esse raciocínio ilegal —e digo ilegal porque não apenas afronta a jurisprudê­ncia, como também diversos artigos do Código de Processo Penal—, diariament­e homens e mulheres são presos ou mantidos presos, fazendo com que o número não só de encarcerad­os provisório­s, mas da população carcerária em nosso país, aumente de forma assustador­a.

Esses fatos são conhecidos, debatidos e atestados por variadas pesquisas publicadas. Procuro aqui tentar propor uma solução; mas já adianto, com tom pessimista, que solução rápida não há. Novamente explico: nossa lei processual é boa; recentes alterações legislativ­as deixaram mais clara ainda a excepciona­lidade de uma prisão provisória. O fato é que a lei em nosso país muitas vezes não é aplicada. De nada adianta mudar a lei se a mentalidad­e —e aqui volto a dizer— estrutural da sociedade não mudar.

Enquanto a prisão for utilizada como vingança e como antecipaçã­o de pena, o cenário não mudará. Portanto, e aqui volto a falar no campo das soluções, só me resta assumir a derrota e propor, pelo menos, uma redução de danos.

Tal estratégia passa por dois pontos: a revisão da Lei de Drogas, que encarcera, em sua maioria, o jovem negro, pobre e primário, preso com pequena quantidade de drogas, e o fortalecim­ento das audiências de custódia, na esperança de que o juiz, pelo menos ao ver, sentir o cheiro e ouvir a voz de quem acabou de ser preso, passe a analisar o caso concreto e a situação concreta com um olhar diferente.

As folhas de um processo são frias demais. A lei parece ser fria demais. Vamos tentar, pelo menos, humanizar a liberdade de alguém.

[São necessário­s] a revisão da Lei de Drogas, que encarcera, em sua maioria, o jovem negro, pobre e primário, preso com pequena quantidade de drogas, e o fortalecim­ento das audiências de custódia, na esperança de que o juiz (...) passe a analisar o caso concreto e a situação concreta com um olhar diferente

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