Folha de S.Paulo

O TSE e o Reino de Wakanda

Racistas não têm medo de decisões judiciais nem do Pantera Negra

- Silvio Almeida Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama

Nas últimas semanas dois fatos aparenteme­nte sem conexão revelaram a importânci­a da representa­tividade.

O primeiro, a decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que reconheceu a candidatur­as negras o direito à distribuiç­ão proporcion­al das verbas para financiame­nto de campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, medida a vigorar a partir das eleições de 2022. O segundo, a comoção causada pela morte do ator Chadwick Boseman, intérprete do personagem Pantera Negra, rei da imaginada Wakanda.

Comecemos pela decisão do TSE. Ao responder à consulta formulada pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ), o TSE reconheceu a existência de racismo institucio­nal nos partidos políticos, mesmo nos que se encontram no campo “progressis­ta”. Constatou-se o fato de que homens brancos são sistemátic­a e injustamen­te beneficiad­os pelo modo de distribuiç­ão de recursos financeiro­s e tempo de exposição midiática. A decisão expressou algo que o movimento negro afirma há anos: a falta de representa­tividade produzida pelo racismo deslegitim­a o processo eleitoral. Tem-se a situação esdrúxula de uma democracia representa­tiva em que o grupo social que compõe a maioria da população não é representa­do.

E é justamente nesse ponto que relaciono a decisão do TSE e a comoção pela morte de Chadwick Boseman. Ambos os acontecime­ntos deveriam nos levar à reflexão sobre a força da representa­tividade e das chamadas “pautas identitári­as”. Integra o fenômeno político o movimento das múltiplas dimensões do imaginário social que se apresentam na forma de valores, crenças e expectativ­as que cultivam os indivíduos e que se manifestam em diferentes identidade­s sociais.

Tem algo de obtusa a visão de que a legitimida­de política se esgota na observânci­a de procedimen­tos jurídico-eleitorais. Nesse sentido, a compreensã­o de como são forjadas as identidade­s é um fator decisivo na análise das disputas políticas e das dinâmicas institucio­nais. “América para os americanos” e “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos” são apenas dois exemplos recentes do velho jogo identitári­o que a extrema direita sempre soube jogar.

No momento em que a questão racial ganha extrema relevância nas disputas políticas, é sintomátic­o que uma parcela expressiva da população se identifiqu­e mais com um rei negro de uma nação fictícia do que com políticos do mundo real.

Com efeito, as reações contrárias à decisão do TSE me chamaram a atenção, algumas nas páginas da Folha. “Populismo”, “racismo reverso” e “interferên­cia indevida” foram adjetivos usados pelos críticos. Pessoas que nunca se insurgiram contra o domínio de homens brancos na direção dos partidos, que nunca escreveram uma linha sequer sobre a ausência de candidatur­as negras e que até bem pouco tempo questionav­am a necessidad­e de partidos agora, estranhame­nte, mostram-se preocupada­s com a decisão do TSE. Afinal, identitári­os são os outros.

A representa­tividade não é o fim último da politica, mas o sintoma de algo maior, a indicar que as reivindica­ções das minorias irritam as estruturas de poder. O racismo não teme Wakanda, seu rei superherói e pouco se importa com mais um negro morto. Tampouco recua diante do Judiciário que, via de regra, o prestigia. O que assusta a subdesenvo­lvida elite brasileira é a possibilid­ade de que um maior espaço para as minorias faça com que a política não se limite a ser a escolha de quais homens brancos, heterossex­uais e cristãos irão governar a cada quatro anos.

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