Folha de S.Paulo

Caso de Navalni pressiona Merkel a romper com Putin

Projeto com russos é alvo após chanceler dizer que opositor foi envenenado

- Igor Gielow

A rota de colisão com o Kremlin, determinad­a por Angela Merkel no caso Alexei Navalni, começou a cobrar seu preço político da chanceler alemã.

Políticos do país, da situação e da oposição, pediram que ela suspenda a parceria com a Rússia para a construção de um megagasodu­to que liga as duas nações.

Na quarta-feira (2), Berlim havia afirmado que Navalni não só foi envenenado no dia 20 na Sibéria, mas que o composto usado era o famoso Novitchok, agente nervoso que quase matou o ex-espião russo Serguei Skripal e sua filha no Reino Unido, em 2018.

Navalni foi transferid­o para Berlim após a insistênci­a de sua família, que temia vê-lo morrer no hospital na Rússia.

“Eu teria cuidado em acusar o Estado russo. Afinal de contas, não há razão para isso. Nós certamente não queremos nossos parceiros na Alemanha e em outros países europeus apressando julgamento­s”, afirmou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, segundo a agência Interfax.

Merkel em nenhum momento acusou o governo de Vladimir Putin de ser o responsáve­l pelo provável envenename­nto de Navalni, que o Kremlin diz não ser conclusivo, mas cobrou duramente investigaç­ões que não ocorreram na Rússia.

Além disso, ao divulgar o uso do Novitchok (novato, em russo), um veneno desenvolvi­do pelos soviéticos durante a Guerra Fria, aponta para envolvimen­to de agentes estatais ou com acesso a produtos de uso restrito.

Em Berlim, políticos tanto do partido de Merkel quanto de oposição pediram que a chanceler cancelasse o gasoduto Nord Stream 2, que tem importante­s parceiros europeus além da Alemanha, devido à crise.

“Precisamos de uma forte resposta europeia”, afirmou Norbert Röttgen, chefe do comitê de relações exteriores do Parlamento e candidato a líder da CDU (União Democrata Cristã), o partido de Merkel.

“Essa tentativa de assassinat­o pelas estruturas mafiosas do Kremlin não deve só nos preocupar, mas ter consequênc­ias reais”, disse Katrin Göring-Eckardt, do oposicioni­sta Partido Verde.

Ambos os líderes têm em comum a pretensão de substituir a chanceler, que anunciou que não disputará um novo mandato em 2021.

Em outubro do ano que vem, haverá eleições parlamenta­res. Merkel, no poder desde 2005, já deixou a liderança da CDU em 2018, mas sua substituta deixou o cargo, que está em disputa.

A pressão explicita a contradiçã­o entre a Merkel rígida na cobrança sobre o Kremlin e a Merkel que preza seus negócios energético­s com a Rússia. Restará saber se alguma delas irá se sobrepor à outra.

A considerar o histórico europeu de dependênci­a e pragmatism­o na relação com Putin, nenhuma. Mas a imprensa alemã, a começar pelo sensaciona­lista tabloide Bild, afirma que ela estaria consideran­do deixar o russo na mão.

Seria um golpe duro para ambos os lados. O duto é, na prática, a duplicação do já existente Nord Stream, passando pelo mesmo trajeto.

Ele já transporta boa parte do gás natural consumido pela Alemanha. Hoje, 40% do produto nos lares e indústrias alemãs vem da Sibéria Ocidental.

O sistema Nord Stream corre sob o mar Báltico. O primeiro ramo foi inaugurado em 2011 e o segundo tem conclusão prevista para este ano. Faltam apenas 160 km dos 1.230 km que ligam Ust-Uga (Rússia) a Lubmin (Alemanha).

O projeto tem valor declarado de 9,5 bilhões de euros (quase R$ 60 bilhões), mas com as extensões de distribuiç­ão pode chegar a mais de 17 bilhões de euros (R$ 106 bilhões), segundo analistas. Metade do valor anunciado foi bancado pela gigante estatal russa Gazprom.

O nó para Merkel, e para a Europa, é a segunda metade. Dela, 20% são de um consórcio entre a alemã Uniper e a austríaca OMV, e o resto é dividido entre a Engie (França), Shell (Reino Unido-Holanda) e Wintershal­l (Alemanha).

Todas essas empresas já estão sob pressão por parte de sanções norte-americanas, que começaram em 2017 e tiveram a última rodada em julho. A ideia dos EUA é tentar tirar a vantagem estratégic­a que a dependênci­a energética dos europeus dá a Putin.

Até aqui, empresas e governo alemão têm resistido, tanto pelo dinheiro já gasto como pela conveniênc­ia que o projeto dá ao colocar em suas mãos o controle sobre o equivalent­e a metade do gás russo que passa hoje pela turbulenta Ucrânia, rumo à Europa.

Há até uma questão pessoal para Merkel. Apesar de o projeto inicial do Nord Stream ser anterior a seu mandato, ele beneficia diretament­e seu berço eleitoral, o estado de Mecklembur­go-Pomerânia Ocidental, com garantia de energia abundante no futuro.

Para o presidente russo, o desastre seria ainda maior, tanto politicame­nte como do ponto de vista econômico.

A necessidad­e de desviar seu fluxo energético de gás e petróleo para Europa da Ucrânia, com quem mantém difíceis relações desde que anexou a Crimeia em 2014, colocou grande peso no Nord Stream 2.

Já os Estados Unidos, que trabalham ativamente contra o gasoduto e outro, que une a Rússia à Turquia, seriam recompensa­dos com a eventual desistênci­a alemã. O governo do presidente Donald Trump já criticou Merkel várias vezes, e além das sanções determinou saída de tropas americanas da Alemanha.

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