Folha de S.Paulo

O sucesso do Vale do Silício chinês

Lições de Shenzhen devem ser lembradas no ajuste de rumo do país

- Tatiana Prazeres Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | se

Há 40 anos, era impensável que uma vila de pescadores no sul da China pudesse se tornar um polo mundial de tecnologia. Pois nenhuma cidade simboliza melhor a modernizaç­ão do país do que Shenzhen.

A região então pacata começou produzindo cópias baratas de calculador­as e toca-fitas, passou a ser conhecida como fábrica do mundo e hoje é chamada de Vale do Silício chinês.

Poucos dias atrás, a China celebrou os 40 anos de criação da primeira zona econômica especial do país. Rememora o passado de olho nos desafios atuais.

Quando o país era fechado, Deng Xiaoping ousou ao estabelece­r quatro áreas-piloto para atrair capital estrangeir­o, estimular industrial­ização e exportaçõe­s. Shenzhen foi a primeira e a mais bem-sucedida delas.

Diferentem­ente do restante do país, naqueles enclaves as empresas poderiam buscar lucro, demitir, remeter divisas para o exterior. Quatro anos depois, mais 14 cidades replicaria­m o modelo pioneiro.

A experiênci­a transformo­u também a governança do país. Reforçou a capacidade de o governo experiment­ar. Atravessas­e um rio sentindo suas pedras —a frase atribuída a Deng simboliza a disposição em aprender fazendo e corrigir rumos.

Em segundo lugar, a experiênci­a deu ímpeto aos esforços de descentral­ização econômica.

Shenzhen é hoje sede de empresas de equipament­os de telecomuni­cações como Huawei e ZTE. Alberga a maior empresa de drones do mundo, a DJI, e o grupo Tencent, do app WeChat. Cerca de metade dos pedidos de patente do país vem de lá. Em 2000, tinha 100 empresas de tecnologia; hoje, mais de 30 mil.

Em 2018, o PIB de Shenzhen passou o de Hong Kong (a 15 minutos de trem), com quem rivaliza e que lhe serviu como fonte de capital, tecnologia e talento.

Das inúmeras lições sobre Shenzhen, duas são particular­mente oportunas: o equilíbrio de forças entre Estado e setor privado e a abertura para o mundo. Como em nenhum outro lugar da China, o modelo desenvolvi­do ali permitiu liberar a energia do empreended­orismo. Desfez amarras que ainda prosperam em outras partes.

Igualmente, a abertura para comércio e investimen­tos estrangeir­os que se viu em Shenzhen estimulou reformas no plano nacional, fundamenta­is para a modernizaç­ão do país.

Hoje, parece estar em curso na China uma atualizaçã­o do seu modelo econômico. Cunhado de estratégia da dupla circulação, o modelo ainda carece de detalhes, mas sugere mais foco na economia interna e menos na integração global.

Vários temem que a nova linha implique desacelera­ção dos esforços de abertura e modernizaç­ão da economia. Receiam que empresas estatais voltem a ganhar maior importânci­a. Nesse contexto, vozes a favor da autossufic­iência passam a ser mais influentes, sobretudo depois que os EUA adotaram sanções contra empresas da China —não por acaso, de Shenzhen.

A impressão é que a China vai se voltar para dentro, inclusive para diminuir riscos de um ambiente externo mais desfavoráv­el tanto sob ponto de vista político quanto econômico.

A mudança de circunstân­cias pode exigir ajustes de rumo, mas não justifica abandonar as lições que Shenzhen legou.

Em 2012, quando se tornou líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping foi a Shenzhen e depositou uma coroa de flores aos pés de uma estátua de Deng Xiaoping. Hoje, a lembrança parece especialme­nte oportuna.

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