Folha de S.Paulo

Pandemia expõe fragilidad­e de imigrantes sem documentos

Estrangeir­os em situação irregular ficam sem acesso a ajudas do governo

- Bruna Souza Cruz e Carolina Marins

Em maio, a boliviana Camila sentiu fortes dores no corpo e na cabeça e teve tosse após entrar em contato com pessoas infectadas pelo coronavíru­s, mas preferiu não procurar um hospital.

Imigrante em situação irregular, ela teve medo de ser presa e deixar sozinhas as filhas de 6 e 5 anos, nascidas no país. Também não pôde solicitar o auxílio emergencia­l de R$ 600 oferecido pelo governo federal, mesmo após o fechamento de sua pequena oficina de costura em São Paulo.

O cadastro para o auxílio exige documentos que ela não tem, como CPF ou RG, assim como o programa de distribuiç­ão de cestas básicas da prefeitura. “Não recebi quase nenhuma ajuda”, diz Camila (nome alterado a seu pedido).

É provável que milhares de imigrantes tenham enfrentado dificuldad­es semelhante­s. Segundo a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, mais de 2.000 dos quase 12 mil imigrantes que procuraram os serviços do órgão nos últimos cinco anos estavam em situação irregular.

De acordo com o padre Paolo Parise, coordenado­r da Missão Paz, entidade de acolhiment­o a imigrantes e refugiados, a pandemia agravou os desafios que eles enfrentam.

“Os que não têm documentos são os mais vulnerávei­s entre os vulnerávei­s”, diz o padre.

Um estrangeir­o pode ficar em situação irregular no Brasil se estender a permanênci­a além do prazo legal permitido pelo visto, cruzar a fronteira sem se apresentar à Polícia Federal ou trabalhar no país sem autorizaçã­o.

Camila entrou no país em 2013, voltou à Bolívia e retornou ao Brasil parati raros documentos demia atrapalhou o processo.

Karina Chuquimia, diretora de uma consultori­a jurídica no Rio de Janeiro especializ­ada em imigrantes e refugiados, diz que a principal consequênc­ia para imigrantes irregulare­s no Brasil é a imposição de uma multa diária, que varia de R$ 100 a R$ 10 mil, além da proibição de trabalhar.

Qualquer pessoa pode pedir a qualquer momento a regulariza­ção, desde que apresente os documentos necessário­s, pague as taxas e quite eventuais multas. No caso de países do Mercosul ou associados ao bloco, como a Bolívia, há isenção da multa.

Com a gravidade do problema, coletivos e organizaçõ­es começaram a fazer pressão pela regulariza­ção imediata de estrangeir­os em território brasileiro na pandemia.

“A principal dificuldad­e para acesso à assistênci­a social, inclusive à saúde, é que muitos imigrantes e refugiados não estão regulariza­dos”, diz Jobana Moya, da Equipe de Base Warmis Convergênc­ia de Culturas, que ajudou a convencer o PSOL a apresentar um projeto sobre o tema no Congresso.

Paulo Saad, diretor da divisão de população da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), explica que a regulariza­ção dos imigrantes facilitari­a sem o cumpriment­o documentos das medidas de enfrentame­nto do coronavíru­s, além de inserir essa população no mercado formal de trabalho. O padre Parise é favorável à aceleração do processo de regulariza­ção, momento não seja oportuno para aprovar leis sobre o tema. “Estamos diante de um governo que, em matéria de direitos humanos, pode usar [uma nova lei] para uma instrument­alização populista”, diz. A busca por serviços de regulariza­ção aumentou em escritório­s como o de Karina. Muitas solicitaçõ­es, porém, podem levar anos. Em março, Portugal foi o primeiro país a regulariza­r imigrantes sem documentos, para permitir seu acesso ao sistema de saúde. A ação inspirou movimentos em países como França, Itália e Espanha. O Canadá anunciou que pretende regulariza­r imigrantes solicitant­es de asilo e que estão trabalhand­o na linha de frente de combate à Covid-19. Até solicitant­es de refúgio, cuja legislação facilita a obtenção de documentos, enfrentam dificuldad­es. Não adianta você me dar CPF, carteira de trabalho, cartão do SUS e falar: ‘Vai, se vira’. Mesmo o brasileiro está sofrendo. Imagine o imigrante”, diz o refugiado sírio Abdul Baset Jarour, vice-presidente da ONG África do Coração. Dados do Observatór­io das Migrações Internacio­nais mostram que, em março, o país registrou a entrada de 12.870 imigrantes. Com o fechamento das fronteiras, foram 342 no mês seguinte. Em abril, ainda foi registrada a saída de 161 estrangeir­os deportados ou extraditad­os.

Não há estatístic­as sobre a transmissã­o do coronavíru­s entre estrangeir­os, mas Parise disse ter ficado surpreso com a quantidade de pedidos de orações para imigrantes que perderam familiares para a Covid-19. Em uma única missa, o padre afirma ter prestado homenagem a 13 estrangeir­os que morreram no Brasil.

“Temos ciência de que há imigrantes e refugiados mortos e infectados, mas nos dados do Ministério da Saúde não há essa informação, por isso a importânci­a de dar visibilida­de”, diz a cientista política María Villarreal, da Unirio.

O sociólogo Gustavo Dias, da Universida­de Estadual de Montes Claros, diz temer no futuro um aumento dos controles de fronteiras.

“A gente está retomando controles migratório­s do final do século 19. Aquele processo de sanitariza­ção cada vez mais acentuado”, afirma ele, membro do projeto Inmovilida­d en las Américas, que mapeia respostas dos países à situação dos imigrantes no continente durante a pandemia.

Ao mesmo tempo, especialis­tas e entidades veem na crise sanitária uma oportunida­de para o aumento das redes de solidaried­ade e de ajuda a populações vulnerávei­s.

O padre Parise reforça que um dos desafios é sensibiliz­ar os próprios imigrantes. A boliviana Camila torce para que sua situação e a de outros melhore. “Eu espero que isso passe rápido.”

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Gabriel Cabral/Folhapress O padre Paolo Parise (à dir.) entrega cesta básica a imigrante na Missão Paz, na região central de SP

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