Folha de S.Paulo

Efeito de PEC é adiar mudanças, e reforma continua na estaca zero

- Carlos Ari Sundfeld

professor titular da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, participou da elaboração da proposta de reforma do RH do Estado capitanead­a pelo ex-presidente do BC Arminio Fraga

O Brasil tem problemas sérios na administra­ção pública. Um deles está nos recursos humanos. Há desigualda­des absurdas entre categorias de servidores. Há carreiras demais. Também faltam estímulos ao bom desempenho. Por isso, a produtivid­ade é baixa. As despesas são incontrolá­veis. Os serviços sociais, como educação e saúde, são precários. E a confusão jurídica é atordoante.

Com a promessa de ajeitar as coisas, o governo enviou ao Congresso uma PEC (proposta de emenda à Constituiç­ão). Seu efeito prático será aumentar a confusão e adiar mudanças.

O primeiro problema é não querer mexer com os servidores atuais. Um mau começo. As distorções existem hoje. Corrigi-las não tira direito de ninguém. Não há direito adquirido ao privilégio e à improdutiv­idade. E não é preciso acabar com a estabilida­de dos servidores para melhorar a gestão pública. Basta cobrar o aumento da produtivid­ade e premiar quem faz mais. Para isso, ajustes por leis ordinárias podem fazer a diferença.

O governo tem diagnóstic­os corretos sobre muitos pontos. Mas o caminho proposto é estranho. Não é preciso PEC para acabar com promoções automática­s, corrigir distorções remunerató­rias, impedir pendurical­hos, modernizar concursos públicos, extinguir carreiras, avaliar servidores em fase de experiênci­a, desligar servidores estáveis que tenham desempenho insuficien­te, ampliar os contratos por tempo determinad­o. Para tanto, bastam bons projetos de lei, cuja aprovação é mais simples.

Em 1998, houve uma reforma que modernizou normas administra­tivas da Constituiç­ão. Até hoje estamos esperando as leis regulament­adoras. Vamos repetir a estratégia que não funcionou?

O que justifica uma nova PEC? Além de desnecessá­ria para boa parte das mudanças, ela precisa do voto de 3/5 dos deputados e senadores.

Em 2019, o governo já havia proposto reformas na Constituiç­ão para controlar gastos públicos, inclusive com servidores, e mudar o pacto federativo. Eram muitas normas, e a qualidade jurídica, duvidosa. De qualquer modo, nada andou até agora. Uma nova PEC não vai agilizar o debate.

Há o agravante de que o efeito imediato de uma emenda constituci­onal sobre o regime dos servidores públicos será quase nenhum. Tudo ainda dependerá de novas leis.

Por que aumentar assim o tempo da reforma? O mundo político tem de cobrar o envio imediato dos projetos de lei, que são de iniciativa exclusiva do Poder Executivo. Nada justifica o adiamento.

Uma curiosidad­e da proposta é dar nome novo para o que já existe. Liderança e assessoram­ento da PEC é o atual cargo de confiança, que continuará dispensand­o concurso.

Cargo típico de Estado é o atual cargo efetivo, que seguirá dependendo de concurso e gerando estabilida­de. Vínculo por prazo determinad­o é o atual contrato por tempo determinad­o dos temporário­s. Mudanças pouco úteis, que aumentam o cipoal jurídico.

Seria bem melhor, por exemplo, se o governo aproveitas­se as emendas parlamenta­res à MP 922, que há poucos meses tentou ampliar os contratos de servidores por tempo determinad­o.

A MP caducou, mas a discussão mostrou as dificuldad­es dos estados e municípios para usar bem esses contratos, frequentes em educação e saúde. Boas soluções surgiram no Congresso. É viável aproveitá-las numa lei nacional. O assunto é urgente e não depende de PEC.

Por fim, há ideias preocupant­es na PEC. Uma é dar ao presidente da República o poder de, sem autorizaçã­o do Legislativ­o, extinguir, transforma­r ou fundir autarquias e fundações. Isso inclui o Ibama, o Iphan, o BC, o Cade, as agências reguladora­s, as universida­des federais e o CNPq.

É evidente que não podem ficar nas mãos de uma só pessoa as decisões sobre organizaçã­o administra­tiva em áreas tão importante­s como ambiente, patrimônio histórico, política monetária, defesa da concorrênc­ia, regulação econômica, ensino superior e desenvolvi­mento científico.

Estamos na estaca zero.

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