Folha de S.Paulo

Pico e precipício fiscal

A estagnação de 2017-19 já mostrou o risco de colocar todas as fichas no PIB privado

- Nelson Barbosa

A semana foi animada na economia. Tivemos o Ploa (Projeto de Lei Orçamentár­ia Anual) de 2021, resultado do PIB no segundo trimestre e do anúncio de reforma administra­tiva. Comentarei o Ploa 2021 nesta coluna, pois, segundo o governo, teremos um pico fiscal em 2020 e um precipício fiscal em 2021.

Especifica­mente, o gasto primário da União foi de 19,6% do PIB em 2019 (descontand­o o pagamento à Petrobras pelo acerto da cessão onerosa de petróleo). Para este ano, no dia 31 de agosto a previsão oficial era uma despesa de 27,6% do PIB.

Porém, no dia seguinte, o governo anunciou mais cinco meses de auxílio emergencia­l, com corte de 50% no valor do benefício. Esse gasto adicional pode elevar a despesa primária de 2020 para 30% do PIB, tornando o Brasil um dos países com maior expansão fiscal em resposta à Covid-19.

Apesar do discurso em contrário, o governo Bolsonaro (com empurrão do Congresso) adotou forte política keynesiana em 2020, e isso ajudou a diminuir o impacto econômico da pandemia. Para 2021, o plano do governo é voltar ao “liquidacio­nismo” de inspiração austríaca, com retirada de todos os estímulos fiscais e corte da despesa primária para 19,8% do PIB.

Caso o cenário do governo se confirme, iremos de Keynes a Hayek em 12 meses, com redução do gasto primário em aproximada­mente dez pontos do PIB.

Parte desse ajuste é natural, pois alguns programas, como o auxílio emergencia­l, não podem ser mantidos nos patamares atuais sem criação de fonte permanente de financiame­nto, o que leva tempo.

Outra parte da redução da despesa em proporção do PIB virá da recuperaçã­o do denominado­r, isto é, do cresciment­o da atividade econômica após a economia atingir o fundo do poço no segundo trimestre. Esse “quique estatístic­o” é normal após uma parada súbita e está acontecend­o no mundo todo.

Do ponto de vista mais estrutural, a principal questão para 2021 não é se devemos reduzir o gasto primário. Devemos.

A principal questão é quão rapidament­e e onde devemos fazer isso.

As avaliações preliminar­es do Ploa 2021 indicam redução perigosa do gasto real com saúde por habitante. No mesmo sentido, haverá nova redução do gasto real por estudante, com risco de paralisaçã­o e sucateamen­to de universida­des e escolas técnicas, fruto do obscuranti­smo que se apropriou do Ministério da Educação.

A proposta fiscal para 2021 também indica holocausto da ciência tecnologia (C&T), provavelme­nte com o menor valor em proporção do PIB dos últimos 15 anos. E, no caso do investimen­to, o orçamento proposto para 2021 parece insuficien­te para preservar a infraestru­tura existente.

Poderia ser diferente? Sim, poderíamos reduzir a despesa em proporção do PIB sem diminuir gasto de saúde por habitante

em momento de grande incerteza sobre a evolução da pandemia. Também deveríamos evitar cortar a educação da geração futura sob o pretexto de preservar a geração futura. O orçamento de C&T poderia ser mantido no nível real de 2020, enquanto o investimen­to deveria subir para ao menos 1% do PIB.

No caso do auxílio emergencia­l, o governo aposta que, a partir de 1º de janeiro, as pessoas hoje inativas encontrarã­o emprego privado e, portanto, não precisarão mais de transferên­cia de renda. Pode acontecer?

Pode. Em economia, tudo é possível, mas nem tudo é provável.

A estagnação de 2017-19 já mostrou o risco de colocar todas as fichas da política econômica no PIB privado, mas nossa equipe econômica resolveu dobrar a aposta, com a maior parte do risco sendo bancada pela renda dos mais pobres.

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