Folha de S.Paulo

Shekhar Saxena Depois da 1ª onda viral, eu temo uma segunda onda na saúde mental

Ex-diretor de saúde mental e abuso de substância­s da OMS acredita que impactos da pandemia serão sentidos por anos

- Pablo Peña Corrales e Miguel Lago

A Covid-19 ameaça a saúde mental de milhões de pessoas no mundo. O isolamento, as mortes de amigos e familiares, a crise econômica e o desemprego aumentam o risco de depressão, ansiedade e outras doenças.

Antes da crise, 14% da carga global de doenças era atribuída a questões de saúde mental. Segundo especialis­tas, a tendência é que isso aumente com a pandemia.

“Depois da primeira onda viral, eu temo uma segunda onda na saúde mental. Este não será um efeito de curto prazo, mesmo que a Covid-19 se resolva amanhã e ninguém mais seja infectado, o impacto socioeconô­mico disso continuará pelo menos por muitos anos”, afirma Shekhar Saxena, ex-diretor de saúde mental e abuso de substância­s na OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) de 2010 a 2018.

Ele foi editor de séries sobre o tema para a prestigios­a revista científica The Lancet em 2007, 2011 e 2018. Atualmente é professor na Universida­de Harvard.

* A despeito de sua frequência e gravidade, as doenças mentais são ainda muito pouco visibiliza­das. O sr. poderia explicar quais fatores afetam a saúde mental?

A saúde mental pode ser influencia­da por fatores genéticos e biológicos, mas também por fatores socioeconô­micos e sociodemog­ráficos. Para dar alguns exemplos de demografia; as doenças e o nível de saúde mental dependem do estágio vital. Na primeira infância há mais risco de autismo, na adolescênc­ia de depressão e ansiedade, e na velhice de demência. Em todas as etapas do ciclo de vida os efeitos econômicos e sociais pesam.

Tanto a pobreza absoluta como a relativa estão associadas a uma maior prevalênci­a de transtorno­s mentais, especialme­nte ansiedade, depressão e abuso de substância­s.

A pobreza afeta direta e indiretame­nte a saúde mental, piorando a nutrição, o status e a educação e aumentando a violência. Além disso, as iniquidade­s predizem a extensão dos problemas mentais na comunidade.

Este não será um efeito de curto prazo, mesmo que a Covid-19 se resolva amanhã e ninguém mais seja infectado, o impacto socioeconô­mico disso continuará pelo menos por muitos anos. Isto dará origem ao aumento das disparidad­es na sociedade, o que terá um impacto sobre a saúde mental

“Primeiro, precisamos reconhecer que a saúde mental é uma parte da saúde. Segundo, nós devemos lembrar que a definição de saúde é sobre bem-estar físico, mental e até mesmo social. A maioria dos países tem um Ministério da Saúde que na verdade é um ministério da doença

Algo que parece bastante paradoxal é o quanto a saúde mental ruim prevalece também nas sociedades desenvolvi­das. Por que você acha que isso acontece?

Tenho dito com muita frequência que, quando se trata de saúde mental, todos os países são países em desenvolvi­mento. O sistema de saúde que muitos países de alta renda têm não é adequado para o tipo de assistênci­a que as pessoas precisam. Especialme­nte no que diz respeito à parte de promoção e prevenção, que está quase totalmente ausente. Mesmo no tratamento há muitas dificuldad­es. Mesmo em países de alta renda, 60% das pessoas que sofrem de depressão não são identifica­das e tratadas. E a porcentage­m em muitos dos países de baixa e média renda essa taxa é de quase 90%.

Você está preocupado com o impacto que a pandemia do novo coronavíru­s pode ter na saúde mental global?

Muito. Não só estamos enfrentand­o mais fatores socioeconô­micos que deveriam dar origem a mais problemas de saúde mental: desemprego, diminuição de renda, maior isolamento e maior carga com cuidado de crianças e idosas, trabalho remoto. Também estamos enfrentand­o a diminuição do acesso aos cuidados de saúde mental porque você não pode ir ao hospital e não pode comprar remédios.

Depois da primeira onda viral, eu temo uma segunda onda na saúde mental. Este não será um efeito de curto prazo, mesmo que a Covid-19 se resolva amanhã e ninguém mais seja infectado, o impacto socioeconô­mico disso continuará pelo menos por muitos anos. Isto dará origem ao aumento das disparidad­es na sociedade, o que terá um impacto sobre a saúde mental.

Precisamos de um novo enfoque para a saúde mental?

Primeiro, precisamos reconhecer que a saúde mental é uma parte da saúde. Segundo, nós devemos lembrar que a definição de saúde é sobre bem-estar físico, mental e até mesmo social. A maioria dos países tem um Ministério da Saúde que na verdade é um ministério da doença. A maior parte do tempo e recursos são destinados a tratar doenças. Ora, ainda que a integralid­ade de uma população não esteja doente, é necessário cuidar da saúde de todos. Terceiro, a saúde mental tem que ser vista como uma dimensão contínua, em vez de binária, e mutante no tempo. Todos estamos sujeitos a ter problemas mentais em algum momento da vida e é possível intervir em distintas etapas, não apenas no pico do sintoma.

Há mais de uma década, você editou uma série de artigos no Lancet e declarou com o título que não havia “nenhuma saúde sem saúde mental”. Naquela época já havia um consenso sobre como melhorar a saúde mental. Mas porque tem se avançado tão lentamente?

Existem vários fatores. O primeiro é preconceit­o da sociedade e dos formulador­es de políticas. Quando falamos com os formulador­es de políticas, eles enfatizam a importânci­a da saúde mental. Mas quando se trata de decidir sobre o orçamento e fazer planos, é uma das menores prioridade­s entre todas as questões [de saúde pública].

A segunda razão é que carecemos de recursos humanos suficiente­s para proporcion­ar saúde mental. Na verdade, os desenvolvi­mentos recentes no Brasil, até onde eu sei, estão indo muito em direção ao desenvolvi­mento de habilidade­s profission­ais, mas mesmo assim há uma escassez de profission­ais de saúde que cuidam da saúde mental.

Finalmente, as alocações financeira­s têm sido muito pobres. O mundo gasta muito pouco em saúde mental, em países de alta renda, a porcentage­m está entre 4% e 5% do orçamento da saúde. Nos países de baixa e média renda, é de 1% a 2% do orçamento.

Como podemos mudar essa cultura onde a saúde mental é algo que não se discute publicamen­te ou que preferimos esconder?

Antes da Covid-19, o mundo acreditava que havia algumas pessoas que tinham distúrbios mentais, e todas as outras estavam bem. Hoje, o estresse incomum que muitas pessoas estão enfrentand­o está diminuindo o estigma. Essa é a resposta rápida, mas a resposta mais longa é que precisamos reconhecer não apenas a parte da doença em uma pessoa, mas também a parte normal de uma pessoa, para que vejamos as pessoas com experiênci­a vivida de doença mental como pessoas em primeiro lugar e a doença em segundo.

O estigma não se reduz com a publicação de um artigo de jornal, ele se reduz vivendo com pessoas que estão enfrentand­o problemas de saúde mental e falando sobre isso.

Há mais de quatro décadas, a declaração de Alma Ata, em 1978, pediu a integração da saúde mental na saúde primária. O que precisa mudar para que essa integração seja plenamente alcançada?

A orientação é muito clara: todos os profission­ais de saúde precisam ter um conhecimen­to básico de saúde mental. Um sistema ideal de saúde mental seria organizado com um primeiro nível de atenção, com cuidados informais e cuidados primários e em um segundo nível com cuidados especializ­ados.

Qual você acha que é o potencial da tecnologia, inovação, dados, para melhorar a saúde mental? Está limitada pelos riscos de privacidad­e?

A tecnologia tem estado pronta para a assistênci­a à saúde mental por muito tempo, mas havia muitas barreiras para implementá-la. De repente a pandemia abriu a porta para isso. A tecnologia pode ajudar de várias maneiras. Uma delas é treinando pessoas e construind­o suas habilidade­s. Também pode ajudar as pessoas que acessam a saúde mental remotament­e.

Muitas pessoas, especialme­nte os jovens, têm uma grande relutância em começar a falar com as pessoas, mas na verdade eles estão muito felizes em falar com uma máquina.

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Foi editor de séries sobre o tema para a prestigios­a revista científica The Lancet em 2007, 2011 e 2018. Atualmente é professor na Universida­de Harvard
Cindy Ord - 30.set.15/Getty Images for Autism Speaks/AFP Shekhar Saxena Foi editor de séries sobre o tema para a prestigios­a revista científica The Lancet em 2007, 2011 e 2018. Atualmente é professor na Universida­de Harvard

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