Coroinha é torturado e morto em novo caso de rixa de facções no Ceará
As velas eram acesas, 40 minutos antes, todas as sextas-feiras e aos domingos, na paróquia São Pedro, em Barra do Ceará, periferia de Fortaleza. Jefferson Brito Teixeira, 14, chegava cedo ao local onde frei João Flores, 66, celebrava a missa. A pandemia do novo coronavírus havia paralisado esse ritual por cinco meses.
Noúltimodia18,aoserconfundido com membro de facção criminosa, Jefferson foi morto com brutalidade por criminosos, em mais um caso da escalada de violência entre facções no Ceará. “Impotência é o sentimento que fica, após esse crime bárbaro contra um menino carinhoso e querido por toda a comunidade”, disse o padre.
A notícia do assassinato de Jefferson chegou ao Vaticano, por meio de carta enviada por Kilbert Amorim Naciel, integrante da paróquia. Em resposta, o papa Francisco enviou mensagem de pesar.
“Dói-me muito o que contas sobre Jefferson. Estou próximo de ti e rezo por ti, pela comunidade paroquial de São Pedro da Barra do Ceará. Rezo pelo eterno descanso do Jefferson e também rezo pela avó que ficou sozinha. Que Deus tenha misericórdia dos assassinos. Por favor, não te esqueças de rezar por mim e te peço que digas à avó de Jefferson que estou muito próximo a ela. Que Jesus te abençoe e a Virgem Santa cuide de ti. Fraternalmente, Francisco.”
Jefferson voltava da aula de capoeira, no fim da tarde, quando foi linchado e teve o corpo vilipendiado. Segundo o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, o coroinha, que não tem antecedentes criminais, pode ter sido confundido com rival devido a três cortes na sobrancelha, como teria o real alvo.
Ele foi morto com chutes, pauladas, pedradas e tiros de arma de fogo, no entroncamento de três ruas, limitadas por facções. “Muito triste ver uma criança perder a vida assim, do nada”, disse uma vizinha, que pediu anonimato por temer represália.
O adolescente foi sepultado em cemitério público da cidade, com as vestes de coroinha, como atuou por dois anos. O gesto serviu de homenagem ao avô, que o garoto chamava de “pai”, um dos principais membros da igreja, que faleceu em 2018.
No dia 23, três suspeitos foram presos por participar do assassinato do adolescente. Dois deles tinham sido detidos, um dia antes da morte de Jefferson, por guardas municipais por outro motivo, suspeita de tráfico de drogas, mas liberados mediante uso de tornozeleira eletrônica.
E o sinal da tornozeleira eletrônica indicou que eles estavam no local e hora da morte de Jefferson. Segundo a polícia, os dois negaram estar no local. Ainda segundo a polícia, o outro detido admitiu ter espancado o adolescente, porque ele era de facção rival e estaria roubando. A reportagem não conseguiu localizar a defesa dos três suspeitos, que seguem presos.
A morte de Jefferson evidencia a violência na disputa pelo tráfico de drogas no Ceará. Em junho, em demonstração de força, criminosos usaram fogos para marcar posição na venda de drogas.
O estado convive com as disputas de quatro facções por territórios e tráfico de drogas: Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro; Família do Norte (FDN), do Amazonas; Guardiões do Estado (GDE), grupo criminoso local; e o PCC de São Paulo.
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social registrou, nos primeiros sete meses do ano, 2.540 crimes violentos no Ceará. O número já é maior que o de 2019, que teve 2.257. Até julho de 2020, os homicídios no estado mais que dobraram no período e já representam 112,54% de todas as ocorrências do ano passado.
Jefferson foi uma das 365 vítimas de morte violenta, com idade até 18 anos, neste ano no Ceará, segundo o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente —acréscimo de 97 em relação a 2019.
A SSPDS afirma que as polícias já fizeram 8.858 prisões em 2020.