Folha de S.Paulo

‘The Vow’ mostra ascensão de seita disfarçada de curso de autoajuda

- Luciana Coelho criticaser­ial@grupofolha.com.br

Durante 12 anos, o cineasta Mark Vicente dedicou sua vida a um grupo cuja promessa era treinar indivíduos a terem pleno domínio de suas emoções. Nesse período, ele documentou sua rotina em vídeos e gravações que ajudam a montar um retrato aterrador envolvendo sexo, assédio moral, manipulaçã­o, trabalho servil e mulheres marcadas a ferro e fogo como gado.

Tal retrato, costurado pelos documentar­istas Karim Amer e Jehane Noujaim, (indicados ao Oscar em 2014 por “The Square”, sobre a Primavera Árabe), virou a série documental “The Vow”, que a HBO lançou no fim de agosto, sobre a bizarra organizaçã­o americana NXVIM.

A obsessão de Vicente por registrar suas conversas, bem como o apetite midiático dos personagen­s centrais, permitiu aos diretores um registro semelhante ao de reality show, quando se acompanha o próprio desenrolar dos acontecime­ntos, em que pese a edição.

O cineasta, depois desgarrado, não foi o único a ser tragado pela NXVIM. Fundada no fim dos anos 1990 com o boom de livros e instituiçõ­es de autoajuda, ela absorveu tempo, trabalho e dinheiro de milhares de pessoas nos Estados Unidos e no México, muitas delas famosas.

É gente como a atriz Allison Mack e a herdeira da empresa de bebidas Seagram, Clare Bronfman, que acabaram condenadas, com outras duas pessoas e o chefe do grupo, Keith Raniere, por um emaranho de crimes que vai de fraude financeira a tráfico sexual e conspiraçã­o para manter pessoas em trabalhos forçados.

A NXVIM foi organizada como empresa de cursos e seminários, ao custo de milhares de dólares cada um, e instituiu uma infindável hierarquia que os discípulos ansiavam em galgar, num esquema de pirâmide em cujo topo pairava Raniere. Como outros gurus autointitu­lados, ele usava seu status e carisma para manter um séquito de parceiras sexuais, nem todas nesse papel por vontade própria.

O olhar de Amer e Noujaim recai sobre os exercícios de dominação mental de Raniere e sua sócia, Nancy Salzaman, que conduzia seminários de “empoderame­nto”, para manter o negócio, com gente trabalhand­o de graça, por duas décadas, até o escândalo estourar, em 2017. Eles incluíam privação de sono e comida, coerção por chantagem e um contínuo assédio moral para os integrante­s crerem que nunca doavam o suficiente ao grupo.

Raniere, como ocorre com megalomaní­acos diante de grandes rebanhos, adotou um título, “Vanguarda”, e nomeou Salzman a “prefeita”. Abaixo, havia um intrincado organogram­a no qual Mack ascendeu rapidament­e com a missão de atrair novas escravas sexuais para seu “mestre” (eram as iniciais de Mack e Raniere que eram queimadas na pele das discípulas).

O que distingue este de outros líderes que se alimentam de fanatismo e carência por respostas é que Raniere evocava a ciência e a lógica para propagar seu “método”, e seus seguidores, gente instruída e bem alimentada, acreditava estar criando um mundo melhor. A NXVIM negou ser um culto religioso. O fanatismo, porém, se alimenta de ambições muito mundanas. O terceiro dos nove capítulos de ‘The Vow’ vai ao ar às 23h deste domingo na HBO; a série está também na HBO Go.

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