Atas idênticas geram suspeitas sobre uso de fundo eleitoral
Ao menos 4 partidos enviaram ao TSE registros de reuniões com trechos iguais; siglas dizem desconhecer coincidências
A Folha identificou ao menos quatro partidos que entregaram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) atas de reuniões partidárias com trechos idênticos entre si.
O aparente “copia e cola” levanta a suspeita de simulação desses eventos para definir critérios de partilha do fundo eleitoral, que no pleito deste ano vai ratear R$ 2 bilhões entre os candidatos.
Num dos casos, o registro da reunião em que o PSL teria decidido as diretrizes para distribuir seus recursos, datado de 3 de junho, traz a transcrição de situação que se assemelha em detalhes, como o emprego de palavras e pontuação iguais, a uma descrita em um encontro do PL, com data de 13 de maio.
Episódio similar se deu com PMB e Solidariedade.
Para cada um dos 33 partidos receber a sua fatia do fundo, é preciso que os dirigentes se encontrem e aprovem resolução estabelecendo os parâmetros para repassar a verba pública a seus representantes nas urnas.
As legendas afirmaram desconhecer a razão das coincidências nos papéis e disseram que as reuniões ocorreram de fato.
Se as eleições de 2018 foram marcadas por esquemas de candidatas laranjas nos partidos políticos, as de 2020 já começam sob suspeita de simulação de reuniões para definir os critérios de distribuição do bilionário fundo eleitoral, a maior fonte de recursos públicos para os candidatos a prefeito e vereador.
A Folha identificou ao menos quatro partidos que entregaram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) atas de reuniões partidárias com trechos idênticos entre si, um “Ctrl+C/ Ctrl+V” que indica a suspeita de que siglas possam ter burlado exigências legais.
O PSL, por exemplo, saiu da condição de nanico em 2018 e terá neste ano direito à segunda maior fatia do bolo, quase R$ 200 milhões, por ter recebido uma expressiva votação na onda que elegeu Jair Bolsonaro presidente da República.
A ata da reunião em que o partido do deputado federal Luciano Bivar (PE) teria definido as diretrizes para distribuição dos seus recursos, datada de 3 de junho de 2020, traz a transcrição de uma situação que se assemelha nos mínimos detalhes, incluindo praticamente as mesmas palavras e os mesmos erros de português, a uma descrita na reunião do PL, com data de realização de quase um mês antes, 13 de maio.
Os dois partidos ocupam sedes vizinhas, no nono andar de um dos principais prédios de escritórios de Brasília.
A ata da reunião do PL descreve a seguinte cena, que teria se desenrolado às 15h do dia 13 de maio, uma quartafeira, na sala 903 do Centro Empresarial Brasil 21, região central de Brasília:
“A senhora secretária-geral, Mariucia Tozatti, fez uso da palavra, para destacar a todos os presentes que entendia que o PL deveria, na distribuição de seus recursos, contemplar os mesmos critérios adotados pelo legislador, demonstrando o fortalecimento de suas bancadas no Congresso Nacional”, diz o documento, que prossegue:
“O presidente [José Tadeu Candelária] franqueou a palavra aos demais presentes [não há vírgula] os quais se manifestaram favoráveis às manifestações feitas na presente Sessão. Diante de tais manifestações, o Senhor Presidente sugeriu a suspensão da presente Sessão para que se possa discutir e elaborar uma Resolução Administrativa desta Comissão Executiva Nacional, estabelecendo critérios da distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). A sugestão foi aprovada por unanimidade dos membros presentes, tendo a Sessão sido suspensa às 15h15”.
A ata da reunião do PSL descreve uma cena incrivelmente similar, que teria se desenrolado às 9h do dia 3 de junho, também uma quarta-feira, em uma sala no corredor oposto ao do PL, a 906, sede nacional do partido.
“O senhor presidente opinou no sentido de que o PSL deveria, na distribuição dos seus recursos, contemplar os mesmos critérios adotados pelo legislador, demonstrando o fortalecimento de suas bancadas no Congresso Nacional”, inicia o texto do PSL.
“O senhor presidente [Luciano Bivar] franqueou a palavra aos demais presentes [não há vírgula] os quais se manifestaram favoráveis às manifestações feitas na presente reunião. Diante de tais manifestações, o senhor presidente sugeriu a suspensão da presente reunião para que se possa discutir e elaborar uma resolução interna desta comissão executiva nacional, estabelecendo critérios de distribuição do FEFC. A sugestão foi aprovada por unanimidade dos membros presentes, tendo a reunião sendo [sic] suspensa às 10h.”
Para que cada um dos 33 partidos políticos receba a sua fatia do fundo eleitoral — que na eleição de 2020 irá ratear R$ 2,035 bilhões—, é preciso que ele reúna seus dirigentes e aprove uma resolução estabelecendo os critérios que irá utilizar para repassar a verba pública aos candidatos. Após isso, a sigla deve encaminhar toda a documentação ao TSE, além de fazer ampla divulgação em seus canais de comunicação.
O objetivo é aprimorar a gestão do dinheiro público, forçando a transparência e o estabelecimento de regras mais claras, além de tentar combater a tendência histórica de os caciques partidários decidirem, sem qualquer tipo de satisfação pública ou interna, qual candidato terá direito ao dinheiro e qual não terá.
Na prática, porém, algumas siglas optam por critérios vagos e subjetivos —uma muito usada é a da submissão da decisão à “conveniência partidária”, sem detalhes sobre o que isso significa na prática—, mantendo, assim, o controle sobre o dinheiro nas mãos dos principais dirigentes.
O PSL esteve em 2018 no centro do esquema das candidaturas laranjas, o que resultou em denúncia do Ministério Público contra o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, então presidente da sigla em Minas Gerais, e em indiciamento de Bivar pela Polícia Federal.
Uma das suspeitas foi o repasse de R$ 400 mil de dinheiro público do PSL para uma secretária de Bivar, Maria de Lourdes Paixão, 68, que oficialmente concorreu a deputada federal e teve apenas 274 votos.
Os casos foram revelados pela Folha.
O PSL foi uma sigla nanica até 2018. Naquele ano, saltou para uma das maiores do país após a filiação e eleição de Jair Bolsonaro.
No ano seguinte, Bolsonaro, já presidente da República, se desfiliou da legenda após afirmar que Bivar estava “queimado pra caramba”, em uma disputa, entre outros pontos, pelo controle das verbas do partido.
Diante da dificuldade de montar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil, Bolsonaro agora negocia uma possível volta ao PSL.
Além do caso de PSL e PL, a Folha também identificou que o PMB (Partido da Mulher Brasileira) entregou ao TSE resolução em que estabelece como critérios de distribuição de seus recursos os mesmos apresentados à Justiça Eleitoral anteriormente pelo Solidariedade, com as mesmas 79 palavras, respectivas pontuações e uma vírgula colocada exatamente no mesmo local indevido.
“A distribuição de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será feita pela direção partidária nacional, [sic] levando-se em consideração os seguintes parâmetros, dentre outros fundamentais para o bom desempenho eleitoral do partido: I - histórico político e de militância partidária do candidato ou candidata; II -potencial de votos da candidatura; III –respeito, defesa e fidelidade aos princípios ideológicos, políticos e programáticos do partido; IV –importância do respectivo colégio eleitoral para o planejamento estratégico de fortalecimento do partido; V-estrutura e organização partidária local”, diz a ata da reunião do Solidariedade, o que é repetido ipsis litteris na resolução do PMB.
O PMB foi criado em 2015 e chegou a ter mais de 20 parlamentares —a quase totalidade deles homens— atraídos pela promessa de controle dos diretórios regionais e das verbas públicas do partido. Assim como chegaram, todos saíram um tempo depois e hoje a sigla não tem mais nenhum deputado.
A sigla entregou ao TSE re
solução datada de 30 de junho. O Solidariedade informa ter sacramentado suas regras em 8 de junho. Ela repete os termos definidos dois anos antes, em 2018.
A Folha pediu aos partidos acesso a eventuais gravações em áudio ou vídeo das reuniões, mas nenhum deles as forneceu.
O PSL disse não saber informar a razão da coincidência com a ata do PL, se limitando a dizer que a reunião ocorreu nos termos descritos no documento entregue à Justiça.
Em nota, a assessoria de imprensa do PL afirmou que o documento apresentado ao TSE reproduz fielmente a reunião e as decisões tomadas pela sigla. “A redação do texto que consta da ata citada obedece aos critérios exigidos pela legislação vigente e registra, criteriosamente, os termos da decisão liberal para a distribuição do fundo eleitoral, encaminhada à Justiça Eleitoral.”
A Folha encaminhou perguntas para o email da assessoria de imprensa do PMB informado no site do partido, mas não obteve resposta. O telefone informado no site oficial não completa chamadas.
O Solidariedade disse, também por meio de sua assessoria de imprensa, que a reunião de 2020 foi efetivamente realizada de forma virtual, através de aplicativo de videoconferência, em 8 de junho, “exatamente como consta em sua ata, a qual foi devidamente assinada eletronicamente pelos que se fizeram presentes”.
“Não havia obrigatoriedade de que a reunião fosse gravada, sendo certo que a assinatura válida dos presentes supre qualquer questionamento quanto à sua realização e o que fora ali deliberado”, diz a assessoria, ressaltando que o TSE já declarou o partido apto a receber os recursos.
“Imediatamente após a aprovação dos critérios de distribuição dos FEFC, estes foram amplamente divulgados pelo partido, inclusive em seu site. Ou seja, quando o Partido da Mulher Brasileira deliberou a respeito, em 30/06/2020, a resolução do Solidariedade já estava amplamente divulgada há vários dias, além do que a resolução do Solidariedade para as eleições de 2020 em muito se assemelha com aquela aprovada pelo partido para as eleições de 2018. O Solidariedade não pode responder por atos partidários praticados por outras agremiações, sem o seu conhecimento”, finaliza a nota.
PSL coloca destino de R$ 100 milhões na mão de Bivar
Destinatário de R$ 199 milhões do fundo eleitoral, ou seja, quase 10% do total, o PSL adotou uma posição inusual na definição dos critérios de divisão do bolo entre os seus candidatos a prefeito e vereador.
Primeiro, atendendo a uma exigência da lei, entregou ata de decisão de sua executiva ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) informando que 50% da bolada, ou seja, cerca de R$ 100 milhões, seriam distribuídos a critério exclusivo da executiva nacional da legenda, comandada pelo deputado federal Luciano Bivar (PE).
Bivar é um dos políticos no centro das suspeitas da promoção de candidaturas laranjas em 2018.
De posse dessa documentação, o TSE aprovou o repasse das verbas ao partido, já que a lei exige apenas isso, a informação dos critérios à Justiça e a sua ampla divulgação.
Procurado nesta sexta-feira (4) pela Folha, porém, o ex-partido do presidente Jair Bolsonaro informou que adotou modelo diferente daquele informado às autoridades.
Segundo o partido, por orientação de compliance da empresa de consultoria Alvarez & Marsal, decidiu transferir a decisão do rateio para uma comissão formada dentro do partido, chefiada pelo deputado federal Delegado Waldir (GO).
Bivar integra essa comissão, mas o PSL afirmou que ele se licenciou por ser do grupo de risco da Covid-19. A comissão estabeleceu repasses para os estados, tomando como base a votação de 2018. São Paulo (R$ 25 milhões), Minas (R$ 15 milhões) e Goiás (R$ 14 milhões) foram os mais contemplados.
Comum no ambiente corporativo, o compliance (conformidade) é um conjunto de normas e procedimentos para prevenir, detectar e punir irregularidades cometidas por funcionários —ou por filiados, no caso dos partidos.
Eventuais discrepâncias entre os critérios informados ao TSE e aqueles efetivamente aplicados pelos partidos podem representar problemas às siglas na análise de suas prestações de contas pela Justiça Eleitoral.
O PSL diz que agirá com transparência, prestando todas as informações às autoridades. O partido afirma que o trabalho da empresa de compliance já resultou em algumas medidas, entre elas a transferência da decisão sobre os critérios para a comissão interna, com o objetivo de tirar o caráter de centralização do manuseio do dinheiro.
A análise dos critérios estabelecidos pelos partidos para divisão do fundo eleitoral entre seus candidatos (21 das 33 siglas já entregaram suas decisões ao TSE) mostra que vários mantêm a tendência de estabelecer normas vagas e de concentrar nas mãos dos caciques partidários e dos congressistas as principais definições.
O PSDB, por exemplo, entregou à Justiça Eleitoral uma ata enxuta, que coloca a divisão dos recursos, basicamente, nas mãos dos dirigentes e congressistas.
“A resolução do PSDB, aprovada pelo TSE, definindo os critérios para o fundo representa uma orientação geral de um processo complexo que se inicia. Reflete discussões democráticas ocorridas dentro do partido. A política é uma ciência humana e como tal, critérios objetivos nunca serão perfeitos”, disse o presidente do partido, Bruno Araújo, por meio de sua assessoria.
Entre os partidos que apresentaram de forma bem mais detalhada os critérios de repasses das verbas aos seus candidatos estão MDB, PV e PSD.
Até agora, o Novo e o PRTB, do vice-presidente Hamilton Mourão, recusaram o recebimento dos recursos públicos.
O fundo eleitoral é a principal fonte de financiamento das siglas. Foi criado em 2017 pelo Congresso após a proibição, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), de que empresas façam doações às campanhas políticas. Neste ano, distribuirá R$ 2,035 bilhões aos partidos.