Em documentário e livro, Caetano Veloso relembra quando foi preso na ditadura
Caetano Veloso rememora em livro e filme a época em que foi preso na ditadura e que rendeu a canção ‘Terra’
Nos dois meses em que esteve preso, na virada de 1968 para 1969, Caetano Veloso não viu o próprio rosto. Guardada nos arquivos da ditadura, uma foto preservou a cara do artista na cadeia sem espelhos —magro, corte militar, olhar mais rijo que triste.
Em seu livro “Verdade Tropical”, o relato da temporada no cárcere evoca uma imagem do romance “Este Lado do Paraíso”, de Scott Fitzgerald —“Narciso em Férias”. É também o nome do documentário de Renato Terra e Ricardo Calil que estreia, nesta segunda, no Festival de Veneza e no Globoplay.
A pedido do músico, o capítulo da prisão sai agora num volume à parte, acrescido de fac-símiles de seu interrogatório e documentos sigilosos.
Produtora, Paula Lavigne idealizou o documentário e convidou para a direção Renato Terra, colunista deste jornal, que repete a parceria com Ricardo Calil, iniciada no longa “Uma Noite em 67”. No cenário austero da Cidade
das Artes, no Rio de Janeiro, Caetano deu uma entrevista de seis horas aos diretores, que decidiram não usar imagens de arquivo e depoimentos e investir numa estética desplumada, concentrada no poder verbal do compositor.
“Nesse formato minimalista, o detalhe ganha relevância. Toda a parte da solitária tem o plano mais fechado. Há uma experiência de prisão. O filme pretende provocar esse sentimento de desconforto”, diz Terra. “Ele não se põe na posição nem de herói nem de vítima. Faz um relato do que aconteceu, do que sentiu na prisão”, acrescenta Calil. “A gente fez essa aposta de o filme ter a força da palavra dele.”
Dias depois do AI-5, o Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, Caetano e Gilberto Gil foram presos por policiais à paisana em São Paulo e levados de carro ao Rio. Após a fase épica dos festivais, os tropicalistas viveram o crepúsculo do movimento em solitárias do 1º Batalhão de Polícia do Exército, a PE, na Tijuca. Nessa altura, Dedé, então mulher de Caetano, desconhecia seu paradeiro.
Transferidos na semana seguinte para a PE da Vila Militar, no subúrbio de Deodoro, eles cairiam nas celas do quartel dos paraquedistas do Exército. No filme, Caetano chora ao rever as tais fotografias do globo terrestre na revista Manchete lida no xadrez —cena revivida na canção “Terra”.
“Renato me estendeu a mão e me perguntou se tinham sido aquelas fotos. Respondi com naturalidade, olhei as páginas com certo estranhamento. Não me dava conta de que nunca tinha voltado a vêlas. Num momento qualquer, já no meio da resposta, me assustei com o que estava vendo. Senti um vazio no tempo”, conta Caetano, em entrevista.
A libido do prisioneiro chegou a zero, mas sua abertura para as superstições se agigantou. Aos 26 anos, ele reconhecia sinais da libertação cada vez que “Hey Jude” tocava num radinho de pilha. Belo momento do documentário, sua interpretação da música de Lennon e McCartney transparece os resíduos de esperança na cadeia, onde compôs a canção “Irene”, agarrado à lembrança do sorriso da irmã.
Diante das câmeras, Caetano releu seu depoimento ao Exército e sorriu. “Subversivo e desvirilizante é uma combinação que tem a ver comigo. Eu sou essa pessoa. Tá certo. Mas ‘exalta os sistemas socialistas’, não! Nunca exaltei.”
Ausente na solitária, a insônia tornou a assediar o artista em Salvador. “Depois da prisão, a dificuldade de dormir voltou —com agravantes. Experimentava terrores noturnos. Tinha dificuldade de admitir que estava obrigado a me apresentar diariamente a um coronel e proibido de deixar o perímetro urbano de Salvador, para onde eu e Gil tínhamos sido levados a mando dos militares”, ele lembra. “Hoje continuo achando difícil dormir. Mas já não me preocupo demais com isso.”
O lado dramático da tropicália seria ruminado mais adiante. “Considero que em Londres eu não conseguia pensar com muita clareza. Estava deprimido com a situação do exílio e era muito difícil acreditar na vida fora do Brasil.”
“Sou de uma geração e de uma região que, digamos assim, não cria na existência do mundo exterior. Víamos filmes americanos e franceses, mexicanos e italianos, ouvíamos canções em inglês e em espanhol, em italiano e francês, mas tudo aquilo parecia ser irreal, parecia só existir nas telas e no rádio. Eu tinha (ainda tenho) de fazer esforço para crer que a vida na Inglaterra era real.”
Na aparência, a prisão se baseava numa mentira divulgada pelo radialista Randal Juliano, de que seu show na boate Sucata, no Rio, envolvia um número com abandeira nacional e a execução do hino entre palavrões. Mesmo esclarecida a farsa, veio o exílio.
“Tive certeza de que a fake news de Randal Juliano tinha sido um mero pretexto quando o major Hilton me pediu desculpas por não ter me liberado quando tinha prometido”, diz Caetano. Sua suspeita cresceu na fase final. Na sala de um capitão, ele ouviu uma análise agressiva mas complexa sobre os tropicalistas, qualificados como mais insidiosos que os cantores de protesto.
Na visita ao país, em 1971, para os 40 anos de casamento dos pais, foi outra vez cercado por agentes da repressão. “As notícias de prisões e internações psiquiátricas se multiplicavam. O tropicalismo era sentido como experiência sábia-ingênua que resultava perigosa. Para nós e para nossos inimigos. O que mais me movia era a vontade de voltar ao Brasil para poder ter pensamentos reais sob reavida real .”
Em “Narciso em Férias”, o livro, Caetano afirma que o texto “entra na cena atual da vida política brasileira de modo abrasivo”. Com frequência, os desvios da história motivam um retorno a canções suas antigas. Em quarentena no Rio, ele voltou a cantar “Nu Com a Minha Música”, que traz o verso “vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Ele pensa, naturalmente, nas ameaças à democracia.
“Às vezes me assusto com o pioneirismo do Brasil no casamento de Estado repressivo com ideologia econômica ultraliberal. Pinochet e Chicago boys (Guedes incluso) vieram quase uma década depois de Castelo Branco e Roberto Campos”, diz. “Mas, claro, nenhuma dessas definições podem se aplicar ao caso brasileiro. Somos anômalos. O liberalismo de Campos e Bulhões não foi tão liberal e o milagre de Delfim era meio chinês.”
“Todos os meus sonhos buscam o jeito de usarmos nossa anomalia para criar um novo modo coletivo de ser. Na real, reajo com repulsa aos arreganhos antidemocráticos e não tenho como aceitar os anti ambientalistas. A receptividade, por par tedos liberais, de ideias monstruosas só faz lembrar que ‘liberdade’ para eles nunca foi senão liberdade de acumular riqueza.”
Homem de vibrações urbanas, Caetano não faz fita de misantropo. O estímulo para suas canções vem de encontros, conversas, filmes, praias, carnavais. Era previsível que o ritmo de criação caísse na quarentena. Com Zeca, seu filho, planejou gravar as inéditas. “Nesses meses, compus muito menos do que nos anteriores. Não que eu quisesse estar compondo dezenas de canções, mas estava animado para fazer um disco que me fosse satisfatório (coisa que nenhum dos que fiz é).”
Os primeiros esboços sugerem um salto experimental no próximo álbum. “Queria inovar na produção e começar com uma música que já teria dança desde o arranjo. Digo que eu definiria abatida a partir demovimentos que queria experimentar com componentes do Balé Folclórico da Bahia”, ele conta. “Quanto às maluquices do Brasil, às vezes produzem desespero. Mas elas dão vontade de fazer uma nova canção sobre os descaminhos do mundo atual.” Leia mais na pág. B11
“Subversivo e desvirilizante é uma combinação que tem a ver comigo. Eu sou essa pessoa. Tá certo