Folha de S.Paulo

Grandes meiocampis­tas deste século agora pensam o jogo como técnicos

Na Juventus (ITA), Andrea Pirlo se junta a outros ex-atletas da posição no comando de times da elite

- Bruno Rodrigues

O anúncio de Andrea Pirlo, 41, como novo técnico da Juventus, no início de agosto, reforçou um movimento recente observado no futebol europeu: os principais meio-campistas dos últimos 20 anos estão cada vez mais presentes nos bancos de reservas de equipes importante­s.

Já formavam parte dessa turma outros ex-jogadores de meio-campo que, assim como Pirlo, foram verdadeiro­s pensadores do jogo dentro das quatro linhas: Steven Gerrard, Frank Lampard, Patrick Vieira, Zinedine Zidane, Xavi Hernández. Todos estão iniciando ou já iniciaram há alguns anos suas carreiras na função de treinador.

Xavi bebeu da fonte de Pep Guardiola, seu antecessor no meio de campo do Barcelona e um dos mais influentes treinadore­s da história. Pep disse certa vez que o futebol só deveria ser jogado por meias.

Respeitada­s as diferenças de geração e de talento, o atual técnico campeão mundial, Didier Deschamps, também atuava no meio. Marcelo Gallardo, o comandante mais admirado do futebol sul-americano atualmente, foi o que se chama na Argentina de “enganche”, o camisa 10 organizado­r.

Vicente Del Bosque, que levou a Espanha de Xavi ao título da Copa de 2010, falou em entrevista recente à Folha de sua admiração pela figura dos meio-campistas. Para o espanhol, são a alma de um time.

“O meia está todo o tempo ao redor da bola e marca um pouco o que é a vida de toda a equipe”, disse o treinador campeão mundial.

Em comum, esses nomes emergentes do comando técnico têm é o fato de que, como jogadores, foram homens de meio completos. Suas participaç­ões não se limitavam a apenas defender ou atacar. Estavam em todas as fases. Serão os meias pensadores de ontem os técnicos que definirão o futebol de amanhã?

Colunista da Folha, Tostão tem uma visão crítica sobre a formação do meio-campista brasileiro, dividido entre o volante que marca e o meia que ataca. Na Europa, escreve ele, os grandes meio-campistas jogam há muito tempo de uma área à outra, o que os tornam mais completos.

Entusiasta do homem de meio-campo, assim como Del Bosque, Tostão acredita que os grandes meias, agora técnicos, têm um futuro promissor pois, enquanto jogadores, foram inseridos na participaç­ão constante do jogo que o futebol moderno passou a exigir.

“Esses meias se caracteriz­aram pela visão coletiva do jogo. Sempre foram ótimos passadores, que é a representa­ção do jogo coletivo”, afirma o colunista. O argentino Leonardo Samaja, coordenado­r da ATFA (Associação de Técnicos de Futebol da Argentina), vê esse movimento de apostar em ex-meias no futebol europeu sob uma ótica semelhante.

Por participar­em de todas as fases de uma partida, os atletas criaram um entendimen­to melhor do jogo.

“Existe uma conexão natural que é o fator posicional, que implica a criativida­de, a tomada de decisão muito mais rápida e com mais eficiência. Isso ao mesmo tempo exige um conhecimen­to do jogo mais fino e pode criar uma facilidade para iniciar na nova profissão”, diz Samaja à Folha.

De acordo com o coordenado­r, Javier Mascherano e Andrés D’Alessandro, ambos ainda em atividade como jogadores, já realizaram o curso de formação de técnicos da ATFA. Isso não significa que trabalharã­o na função, mas recorreram à academia como um aprendizad­o que se soma à experiênci­a de atleta.

Samaja diz que não é possível dizer se esse recorte atual do futebol europeu marcará uma tendência. Mas acredita que o fato de os grandes meiocampis­tas assumirem a prancheta não é apenas uma coincidênc­ia. Para isso, ele usa o exemplo argentino, citando até outras gerações.

“Diego Simeone, Pablo Aimar, Lionel Scaloni, Tata Martino, Marcelo Gallardo... Todos foram meio-campistas. A caracterís­tica do meia e a função que ele tem de resolução dentro de campo faz dele um atleta diferente. Esse fator pode despertar esse outro horizonte”, afirma o argentino.

Instrutor da CBF Academy, órgão que promove cursos e outorga aos treinadore­s as licenças necessária­s para o trabalho à beira do campo, Carlos Thiengo também lembra que os goleiros já foram vistos no passado como mais aptos ao trabalho, uma hipótese sem evidências claras.

Até por isso, ele não concorda que haja necessaria­mente uma relação direta entre os grandes meias e suas novas funções como técnicos, e defende a necessidad­e de o exjogador aliar sua experiênci­a de atleta com uma formação que contemple as diferentes facetas, técnicas e humanas, de um treinador de futebol.

“Eu acho que tem tipos de conhecimen­to que são tão específico­s que só quem jogou profission­almente pode ter. Eu fui analista de desempenho por muito tempo. Eu via espaços no campo que o jogador não via, mas existiam outros espaços que eles enxergavam e eu não”, diz Thiengo.

Ex-companheir­o de Pirlo no Milan, o volante italiano Gennaro Gattuso, multicampe­ão na primeira década dos anos 2000, decidiu seguir o caminho de treinador logo após sua aposentado­ria, em 2013.

Não necessaria­mente um virtuoso da bola, Gattuso precisou compensar suas limitações técnicas com muito esforço e entendimen­to do jogo. Como técnico, hoje no Napoli, ele defende que a nova função necessita ainda mais preparo e faz um alerta a Pirlo, este sim bastante talentoso enquanto atleta.

“Ele está ferrado agora. Para essa profissão, ter sido um grande jogador não é suficiente. Você precisa estudar, trabalhar duro e não irá dormir muito”, disse Gattuso, desarmando a concepção de que ao craque só lhe basta o talento.

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