Folha de S.Paulo

Portaria ameaça direitos e vida das mulheres

Há requintes de crueldade, como visualizar o feto

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Melania M. R. de Amorim, Aline V. Brilhante e Liduína de A. Rocha e Sousa

Ginecologi­sta, obstetra e professora da UFCG e do Imip, integra a Rede Médica Pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice/Brasil)

Ginecologi­sta e obstetra, é professora na Universida­de de Fortaleza e doutora em saúde coletiva

Ginecologi­sta e obstetra, é presidenta do Comitê Estadual de Prevenção do Óbito Materno, Fetal e Infantil do Ceará

No último dia 27 de agosto, o Ministério da Saúde publicou a portaria 2.282, que dispõe sobre o procedimen­to de justificaç­ão e autorizaçã­o de aborto nos casos previstos em lei no âmbito do SUS —o que pode inviabiliz­ar o acesso a serviços e cuidados às meninas e mulheres com gravidez decorrente de estupro.

A portaria torna obrigatóri­a a notificaçã­o à autoridade policial. Essa medida, além de violar os direitos à privacidad­e e à autonomia da mulher, configura quebra de sigilo profission­al, expondo-a ao risco de retaliação pelo agressor. A compulsori­edade da denúncia prejudica, ainda, o acesso a uma assistênci­a oportuna, pois afasta as vítimas dos locais de acolhiment­o e cuidados. Essa medida também é ineficaz, com amplas evidências de que a obrigatori­edade da denúncia tem pouco ou nenhum efeito sobre a condenação do autor do crime.

Igualmente inadequada é a inclusão de um médico anestesiol­ogista na equipe que confere legitimida­de ao laudo técnico, medida descabida e sem fundamento. A maior parte dos procedimen­tos de aborto legal acontece em idade gestaciona­l precoce, demandando apenas medicações, sem necessidad­e de procedimen­tos anestésico­s.

Trata-se, além disso, de procedimen­to obstétrico, não cabendo parecer de outra especialid­ade. Essa é uma medida que não contribui para a segurança dos abortos previstos em lei, que burocratiz­a o processo e dificulta o acesso ao cuidado, aumentando a possibilid­ade de exposição a violências institucio­nais.

O artigo 8º da portaria 2.282 promove requintes de crueldade, oferecendo às vítimas a visualizaç­ão do feto através da ultrassono­grafia. A mera sugestão, e pior, a exposição a essas imagens promove mais dor e desassosse­go a pessoas já tão fragilizad­as emocionalm­ente.

É óbvio que essa “oferta” tenciona unicamente incentivá-las a desistir do direito ao aborto, embora existam evidências de que essa desistênci­a não acontece.

Destacamos que todos esses óbices impostos pela portaria compromete­m ainda mais o funcioname­nto dos serviços de atendiment­o às vítimas de violência sexual e ao aborto previsto em lei. São dificuldad­es que podem impedir que meninas e mulheres procurem os serviços, assustadas com questões como quebra do sigilo, que desejam manter, ameaçadas pela ideia de visualizar o embrião/feto na ultrassono­grafia e pela expectativ­a de um processo longo e doloroso. Isso tem o risco potencial de aumentar abortos inseguros na clandestin­idade, com sérios riscos à saúde e à vida das mulheres.

Em um país com profundas desigualda­des sociais, de raça e gênero, no qual ocorrem pelo menos 180 estupros por dia, a maior parte contra mulheres vulnerávei­s, deveríamos estar reivindica­ndo medidas de reparação social e racial efetivas, educação sexual nas escolas e acesso seguro aos direitos já conquistad­os. Infelizmen­te, a luta, neste momento, é contra a efetivação de formas mais perversas de controle social sobre os corpos das mulheres. Nesse contexto, ser mulher é uma experiênci­a de medo e violência.

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