Folha de S.Paulo

Jornalismo sob ataque

Entender o caminho trilhado pela imprensa até aqui talvez a ajude a sair dessa

- Flavia Lima

Nos últimos dias, ganhou novos contornos o esforço de desgastar a imprensa e inculcar no público dúvidas sobre a veracidade do que é publicado.

Após um domingo de muito sol e calor, o jornal O Estado de S. Paulo trouxe em sua capa de segunda (31) uma foto da praia de Ipanema, no Rio, lotada. Não demorou muito que usuários de redes sociais dissessem que a imagem era falsa, publicada com o objetivo de manipulaçã­o.

Não ficaram claros os motivos dessa suposta manipulaçã­o. Se, fazendo coro com os negacionis­tas, a Covid-19 é algo semelhante a uma gripe, uma praia cheia de gente indicaria que uma boa parte das pessoas se convenceu disso.

Assim, o que explicaria o ataque ao jornal, senão uma vontade genuína de, não importa o assunto ou o cenário, minar a credibilid­ade da imprensa?

Checadores de conteúdo foram mobilizado­s para aferir a data em que a foto havia sido tirada e confirmar que tinha sido feita no domingo, mas é improvável que o mesmo grupo de pessoas que leu a mensagem original tenha tido acesso ao desmentido. Além disso, a quantas dessas pessoas o desmentido tem importânci­a?

Na mesma segunda-feira, reportagem da TV Globo mostrou que a Prefeitura do Rio de Janeiro mobilizou uma rede de funcionári­os em cargos de confiança para fazer plantões em frente aos hospitais municipais, intimidand­o usuários da rede, impedidos de falar de agruras em relação ao atendiment­o, e inviabiliz­ando o trabalho da imprensa.

A organizaçã­o dos funcionári­os era feita por pelo menos três grupos formados em aplicativo de mensagens, um dos quais nomeado “Guardiões do Crivella”, em referência ao prefeito, Marcelo Crivella.

As imagens feitas pela TV Globo são constrange­doras. Numa delas, um “guardião” tenta intimidar um homem que perdeu um dedo. Em outra, dois deles interrompe­m aos gritos entrevista de uma mulher que cobrava transferên­cia de hospital da mãe com câncer.

Não chega a surpreende­r que a prefeitura tenha dito que os grupos serviam para “melhor informar a população”. Já se tornou comum usar como justificat­iva para um comportame­nto ou decisão absurdos exatamente o seu contrário.

No episódio, as estratégia­s do mundo das redes sociais (gritaria e negação) foram transposta­s para a vida real com o propósito de calar críticos e semear o descrédito da mídia tradiciona­l.

Felizmente, a resposta veio em forma de bom jornalismo, com uma bem apurada reportagem, que mostrou imagens dos “guardiões” do prefeito em ação. Interrupçõ­es em chamadas ao vivo não são uma novidade, mas feitas a mando de governos e pagas com dinheiro público parecem coisa inédita.

Para fechar a semana, na sexta (4), a Justiça proibiu que a Globo divulgue documentos sigilosos da investigaç­ão de que é alvo o senador Flávio Bolsonaro (Republican­os-RJ), suspeito de liderar esquema de “rachadinha” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativ­a. Se há interesse público, a publicação desses documentos, ainda que passível de críticas, é trabalho da imprensa.

Como a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigat­ivo) recentemen­te ressaltou em relação a outro caso (mais uma determinaç­ão da Justiça, dessa vez a de que o portal GGN, blog do jornalista Luis Nassif, retire do ar 11 notícias que envolvem o BTG Pactual), “buscar reparação judicial é direito de empresas e cidadãos, mas censurar conteúdo jornalísti­co fere a liberdade de expressão”.

Há algo de muito errado quando a divulgação da imagem de uma praia lotada, o acompanham­ento de serviços municipais de saúde ou o direito da população de conhecer detalhes de um esquema de desvio de recursos públicos são atacados com a mesma intensidad­e, ainda que com instrument­os diferentes.

Em nome de abolir as cobranças feitas em nome do interesse público, vale ameaçar calar a boca, exigir a publicação de notícias positivas, partir para o corpo a corpo intimidató­rio ou recorrer à censura.

Há um clima geral de intimidaçã­o da imprensa, que cresce, se diversific­a —e não se restringe ao Brasil.

Começa a ser decidido nesta semana, em Londres, o pedido de extradição aos EUA do jornalista Julian Assange, do WikiLeaks —homem que expôs documentos secretos dos EUA que revelavam desmandos e violações dos direitos humanos.

À parte a figura controvers­a de Assange, o fato é que os EUA querem julgá-lo com base na Lei de Espionagem e, segundo analistas, há o perigo real de que o direito de receber documentos vazados e publicá-los, sempre em nome do interesse público, sofra um duro golpe.

Criminaliz­ar, calar ou minar a credibilid­ade da imprensa parece estar na ordem do dia. Certamente não é a primeira vez que isso acontece. Entender o caminho trilhado pelo próprio jornalismo até aqui talvez o ajude a sair dessa.

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Carvall

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