Folha de S.Paulo

Sem Deltan, Lava Jato pode se perder em seu ‘quebra-cabeça’

Novo coordenado­r terá atribuição crucial de definir rumos das investigaç­ões

- Felipe Bächtold

Mais do que um porta-voz ou um para-raios de críticas, o procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol tinha entre suas atribuiçõe­s uma responsabi­lidade fundamenta­l em uma operação que pode se perder diante de seu gigantismo e de uma certa corrida contra o tempo.

Como coordenado­r da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan praticamen­te não participav­a mais da rotina de audiências na Justiça nem vinha se manifestan­do sobre detalhes dos mais recentes focos da operação.

Mas, ao longo de sua trajetória na operação, esteve à frente das discussões internas sobre os passos seguintes das investigaç­ões e quais rumos as novas etapas deveriam priorizar.

Trata-se de uma escolha crucial para uma operação que acumulou tão vasto acervo que leva a uma miríade de possibilid­ades sobre os caminhos nos quais vale a pena investir tempo e recursos.

Na linguagem de um de seus principais críticos, o procurador-geral Augusto Aras, essa bagagem de delações, depoimento­s e conexões de provas colhidas ao longo de seis anos representa­m uma “caixa de segredos” que precisa ser desfeita.

Partem dessa “caixa” desdobrame­ntos de investigaç­ões que embasam as novas frentes da operação. Passados seis anos e meio da deflagraçã­o da primeira fase, o cálculo agora envolve também a viabilidad­e operaciona­l de insistir em certos assuntos.

Parcela importante das apurações dos crimes na Petrobras, por exemplo, tem conexões com o caixa eleitoral das campanhas de 2006 e 2010 —mais de uma década atrás, portanto. Quanto mais antiga a suspeita, mais difícil fica levantar provas, ouvir relatos e comprovar os delitos —sem falar na possibilid­ade da prescrição.

Em 2017, Deltan falou à Folha sobre como identifica­va prioridade­s nesse trabalho: “A questão passa a girar em torno do quanto vai ser útil para a sociedade a propositur­a de novas ações [sobre assuntos antigos já abordados] que vão ocupar o tempo que seria investido em realizar investigaç­ões em relação a pessoas que ainda não foram alcançadas”.

O cálculo sobre o rumo das novas frentes da Lava Jato mescla, portanto, o quanto as investigaç­ões são exequíveis, o prazo decorrido desde os crimes delatados e, pode-se especular diante do teor das conversas que vieram a público em 2019, até o alcance midiático e político que as acusações inéditas podem proporcion­ar.

Nos últimos anos, essa avaliação também passou a levar em conta o risco de novas etapas serem paralisada­s por ordens de tribunais de outras instâncias.

Exemplos recentes mostraram o quanto um rumo incerto pode significar meses de trabalho em vão. Foram retiradas de Curitiba, por exemplo, duas das principais frentes da Lava Jato em 2019, uma que envolvia o ex-operador do PSDB Paulo Preto e outra que tratava de negócios de um dos filhos do ex-presidente Lula.

A avaliação desses fatores agora caberá ao substituto de Deltan, Alessandro José Fernandes de Oliveira, que, embora atuante no âmbito da Lava Jato em Brasília, não esteve imerso na vastidão de procedimen­tos que a Lava Jato paranaense gerou desde 2014.

Deltan comparava as investigaç­ões da Lava Jato à montagem de um quebra-cabeças que precisa recorrer a peças de fases antigas da operação para formar seu quadro completo —analogia odiada por advogados.

Em um caso recente, uma denúncia apresentad­a na semana passada contra o atual ministro do Tribunal de Contas da União Vital do Rêgo contou com elementos de uma investigaç­ão correlata contra o ex-senador Gim Argello, deflagrada ainda em 2016.

A renovação do grupo de procurador­es da força-tarefa pode atrapalhar, sem a memória desses episódios distantes, novas construçõe­s desse tipo.

A força-tarefa de Curitiba tem hoje 14 integrante­s, sendo que só 5 são veteranos das etapas mais antigas da operação.

Em 2019, se aposentou um dos mentores da investigaç­ão nesse formato, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que, assim como Deltan, havia atuado no caso Banestado nos anos 2000, no qual algumas das fórmulas da Lava Jato foram gestadas.

O procurador Diogo Castor, que liderou apurações sobre o ex-deputado Eduardo Cunha, foi retirado do grupo também no ano passado depois de comprar um outdoor de autoelogio à operação e acabou enviado de volta para sua lotação mais pacata no interior do estado.

Jerusa Viecili, que ficou conhecida por um pedido de desculpas após a revelação de mensagens sobre a morte de um neto de Lula, retornou para o Rio Grande do Sul.

O grupo de procurador­es em Curitiba teve sua autorizaçã­o de funcioname­nto provisoria­mente renovada por um ano no último dia 1º, em medida que ainda foi avalizada pelo procurador-geral.

No campo político, sem sua principal face, a Lava Jato tende a perder força em seus embates com Augusto Aras e com os ministros da ala crítica do Supremo Tribunal Federal.

Mas a discrição também pode ter suas vantagens. Mesmo sendo muito mais afetadas por medidas do ministro Gilmar Mendes, o braço da Lava Jato no Rio, por exemplo, teve resultados até mais efetivos nos últimos tempos do que os de seu grupo inspirador, de Curitiba.

Resta ver se, formalment­e afastado, Deltan Dallagnol ainda manterá influência sobre a equipe.

 ?? Jorge Araújo - 24.out.17/Folhapess ?? O procurador da República Deltan Dallagnol, que coordenou a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, e o então juiz Sergio Moro, em 2017
Jorge Araújo - 24.out.17/Folhapess O procurador da República Deltan Dallagnol, que coordenou a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, e o então juiz Sergio Moro, em 2017

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil