Folha de S.Paulo

Risco de que Covid-19 seja pretexto para adiar eleição justifica renúncia já

Para ambientali­sta e dirigente do Partido Verde búlgaro, repressão violenta a protestos é prova de que país deixou de ser democracia

- Borislav Sandov Ana Estela de Sousa Pinto

O spray de pimenta cegou todo mundo, dois policiais o agarraram e Borislav Sandov, 37, se tornou um dos 126 detidos durante a maior manifestaç­ão recente contra o governo em Sófia, capital da Bulgária, na última quarta (2).

Ambientali­sta, dirigente do Partido Verde búlgaro e especialis­ta em clima e energia, Sandov diz que a repressão violenta foi só mais uma prova de que seu país deixou de ser uma democracia.

O episódio que tem levado milhares de pessoas às ruas desde 9 de julho foi a tentativa de um político de oposição de entrar numa praia que deveria ser pública, mas foi apropriada por um aliado do premiê, Boiko Borisov.

“Ele se tornou dono do lugar, construiu edifícios, fez uma marina. Tudo ilegal, mas as instituiçõ­es do governo atuam para encobrir as irregulari­dades”, afirma o ativista.

A praia privatizad­a é uma gota d’água se comparada à corrupção ampla e à apropriaçã­o do Estado pelo que os manifestan­tes chamam de “máfia oligárquic­a”, diz Sandov.

“Mas se tornou muito evidente do que está acontecend­o, muito doloroso de ver. Foi a fagulha que iniciou o fogo.”

Para o ambientali­sta, a violência da última quarta tenta quebrar a determinaç­ão dos manifestan­tes e dar fôlego para Borisov continuar no poder.

Há eleições marcadas para daqui a seis meses, mas Sandov diz que não faz sentido esperar: “O maior risco é que uma segunda onda de Covid-19 sirva de desculpa para que o governo adie o pleito”.

Por telefone, um dia depois de ser solto, ele disse à Folha que manifestan­tes búlgaros se decepciona­ram com a União

Europeia e falou sobre a dificuldad­e de criar um partido num país em que “política é uma palavra suja”.

O sr. foi preso e indiciado, mas na Bulgária protestar não é infração, certo?

É permitido, claro. Éramos um país democrátic­o. Infelizmen­te não somos mais. Quando a Bulgária deixou de ser democracia?

Nos últimos

meses, governo e polícia têm desrespeit­ado as leis, violado direitos humanos e a democracia. Barraram assistênci­a legal aos detidos, espancaram jornalista­s. A violência policial não é ocasional. É premeditad­a, seguiu ordens.

Com ou sem o consentime­nto do premiê?

Borisov foi policial e tem muita experiênci­a em segurança privada. Sabe muito bem como esse tipo de repressão violenta pode gerar

inseguranç­a nos manifestan­tes, abater sua determinaç­ão. Não descarto instruções dele.

A repressão quebrou a determinaç­ão dos manifestan­tes?

Espero que não. Veremos nos próximos dias. É nosso direito protestar. Estamos na Europa, no século 21!

Considerou satisfatór­ia a reação da UE?

Ainda estamos esperando uma reação. O partido de Borisov faz parte da maior família política da UE, o PPE [Partido do Povo Europeu, de centro-direita], e o premiê é sempre caloroso com os poderosos europeus, como a chanceler alemã, Angela Merkel, e a Comissão Europeia. Por isso, a UE se faz de cega para o que acontece na Bulgária. Dizem que não é como [o primeiro-ministro Viktor] Orbán na Hungria, não é tão ruim como a Polônia ou os países de fora da UE.

A situação na Bulgária se compara às da Hungria e da Polônia?

Tem os mesmos problemas, com a liderança autoritári­a de Boiko Borisov, que eu chamaria de ditador “soft”: tudo no país depende dele, de suas mensagens. O Parlamento depende totalmente de suas decisões. Borisov está em seu terceiro mandato e indicou metade dos membros da Suprema Corte. Está mudando o Judiciário por dentro.

O sr. disse que “o sonho europeu dos búlgaros está se transforma­ndo em decepção e raiva”.Quaisascrí­ticasàUE?

A população se ressente da falta de atenção da UE, de não ver uma reação tão forte quanto as contra a Hungria e a Polônia. Quando a Bulgária ingressou na UE, era o país mais otimista em relação ao bloco. Isso tem mudado com a progressiv­a perda de liberdade.

Há também revolta porque o controle da imprensa passou a ser um problema, em grande parte devido ao dinheiro que o bloco manda para o país.

O governo central o repassa só para os veículos pró-governo, até mesmo para os que espalham fake news contra a UE. O resultado foi a redução da liberdade, e a passagem de mais de 50% do controle da mídia para as mãos de um oligarca de um dos partidos da coligação do governo.

Há um sentimento antieurope­u entre os manifestan­tes?

Por enquanto, é apenas decepção. Pesquisas mostram que os búlgaros acreditam mais nas instituiçõ­es europeias que nas búlgaras. Isso indica que uma mudança de humor para o eurocetici­smo não está à vista, mas estamos no meio do caminho.

Apesar de todos os problemas apontados pelo sr., Borisov foi reconduzid­o ao governo nas eleições de 2017, logo após ter perdido a eleição presidenci­al. Isso não mostra apoio popular?

Parece contraditó­rio, mas há razões claras. A candidata de Borisov à Presidênci­a era muito fraca, e [o atual presidente] Rumen Radev, ao concorrer como independen­te, uniu diversas forças políticas. Como ele nunca foi ligado a partidos, pode se tornar a opção dos que eram contra Borisov. Outro problema é que eleições parlamenta­res são especialme­nte manipulada­s na Bulgária.

O fato de que as próximas eleições estão marcadas para daqui a seis meses pode enfraquece­r os protestos? Não pode haver uma divisão entre os que preferem investir na via eleitoral?

O maior risco é que uma segunda onda de Covid-19 agora no outono sirva de desculpa para que o governo adie as eleições regulares.

É muito importante também que tenhamos um governo legítimo nos próximos seis meses, porque haverá decisões muito importante­s na UE sobre os planos de recuperaçã­o pós-epidemia e o orçamento do bloco dos próximos sete anos, além do Green Deal [estratégia para tornar a economia europeia neutra em emissão de gás carbônico].

Não queremos dar nenhuma chance para que este governo aprofunde o que já vem fazendo nos últimos meses.

Que cenários projeta para as próximas semanas?

O primeiro é de maior pressão da UE, com o congelamen­to da transferên­cia de fundos, o que afeta diretament­e Borisov, que usa esse dinheiro para garantir sua estabilida­de. O apoio aos protestos por renúncia, que hoje é de 60% da população, segundo pesquisas, cresce por causa da violência policial. Com isso, o governo não teria opção a não ser renunciar.

Outra possibilid­ade é o governo usar todos os recursos para se manter no poder até as próximas eleições, quando certamente ele será derrotado, pois a insatisfaç­ão da população só vai crescer.

O terceiro cenário é o de que o governo adia as eleições com o pretexto da Covid-19, o que deve trazer grande instabilid­ade, com mais conflitos como o da quarta-feira (2).

A consciênci­a ambiental é forte o suficiente na Bulgária para impulsiona­r o Partido Verde, do qual o sr. é um dos líderes?

O partido faz parte de um movimento verde, que nos últimos 20 anos conseguiu barrar muitos projetos problemáti­cos, como gás de xisto [combustíve­l fóssil obtido de rochas], plantas geneticame­nte modificada­s. Um de nossos principais problemas agora é justamente as construçõe­s no litoral, a tentativa de transforma­r nossas praias em resorts turísticos.

O sr. se considera um ativista ou um político?

Política é de alguma forma uma palavra suja na Bulgária. Foi um problema três anos atrás, quando criamos o Partido Verde, porque parte dos nossos 7.000 membros eram da sociedade civil, e foi difícil assumirem-se como políticos. Mas percebemos que precisamos estar representa­dos na esfera política.

Não é a atividade política e as políticas públicas que são sujas, são as pessoas, e cabe a nós mudar isso.

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Stoyan Nenov/Reuters Manifestan­tes protestam contra o governo em Sófia, na Bulgária, na quarta-feira (2)
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Radila Radilova/Movimento Verde via Facebook

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