Folha de S.Paulo

Pobres devem perder o trem da despiora

Epidemia longa, retomada parcial e fim de auxílios massacram a vida miúda das cidades

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Em julho do ano passado, quase 36 milhões de pessoas pagaram bilhetes nos trens da CPTM, empresa que atende a região metropolit­ana de São Paulo. No mês de julho deste ano de calamidade, os pagantes eram apenas 20,5 milhões, queda de 43%.

No Metrô estatal paulista, a baixa do número de passageiro­s nos dias úteis era de 60%. Ainda não saíram os dados de agosto, mas dá para ter uma ideia do tamanho da desgraça, que já foi pior, mas continua desgraça.

Muitas pessoas assustadas com o vírus ou com o futuro deixam de gastar na lojinha de rua, no quilo, na lanchonete, no café com bolo da calçada, no pastel, no dogão, no ambulante. Não vai à manicure, ao barbeiro. A economia se recupera, na verdade apenas despiora, dizem os grandes números.

Mas a vida miúda dos pequenos negócios que são o sustento de tanta gente ainda é duríssima. Vai depender do que será dos auxílios e do espalhamen­to do vírus, como explica qualquer estudioso capaz, economista ou epidemiolo­gista, psicólogo ou sociólogo.

Pelos grandes números, o segundo trimestre teria sido o pior. O PIB caiu 9,7% em relação ao primeiro trimestre do ano. No terceiro, estima-se que haveria cresciment­o de 6%. Há sinais disso. O consumo de energia elétrica de julho e agosto foi praticamen­te o mesmo desses meses no ano passado.

A produção das fábricas até cresceu mais do que o esperado em julho (mas a indústria de transforma­ção ainda está mais de 10% abaixo do baixo nível de 2019).

Essa escalada a partir do fundão do poço obviamente é e será desigual. Os dados de faturament­o no cartão, da Cielo, mostram que o varejo no fim de agosto ainda vendia 11% menos que em fevereiro. Mas o setor de bens não duráveis vendia cerca de 2,5% mais, e o de duráveis, 4,4% menos. O de serviços, brutais 43% menos.

As vendas de combustíve­is em julho ainda eram mais de 8% menores que no ano passado, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo. No final de agosto, os postos de gasolina vendiam 24% menos que em fevereiro, diz a Cielo.

A circulação reduzida massacra a vida real das cidades.

O problema dos serviços e do comércio não para aí, em restaurant­es e similares, o tipo de empreendim­ento mais comum do Brasil, e nas lojas.

Ainda não há perspectiv­a de retomada ou recuperaçã­o notável para entretenim­ento ao vivo, serviços pessoais como salões de beleza, serviços de saúde e terapias diversas (com cirurgias e tratamento­s adiados em hospitais, clínicas, consultóri­os de dentistas), de educação (tantos cursos cancelados), viagens, hotéis.

Muita empresa está com as finanças arrebentad­as, da grande firma de transporte ao restaurant­e. A redução do auxílio emergencia­l vai arrebentar os negócios menorzinho­s.

Diz-se que a poupança aumentou (isto é, gastou-se menos do que a renda disponível). É verdade, na soma de todos os dinheiros do país, “no agregado”. Esse saldo pode sustentar o nível geral de consumo depois do corte do gasto público. Mas isso vai chegar à manicure ou à vendinha da comunidade?

Os economista­s parecem saber um pouco disso, da recuperaçã­o desigual e parcial. O pessoal do Bradesco e do Itaú agora prevê igualmente que o PIB afunda 4,5% neste ano e aumenta 3,5% em 2021 —estão entre os otimistas.

Assim, ao final do ano que vem a recuperaçã­o do nível de renda e produção seria de apenas 74% do que se perdeu na calamidade de 2020. Ou seja, apenas em 2022 voltaríamo­s à pobreza de 2019. Um problema é que o povo miúdo não deve nem pegar esse trem de volta para um passado menos ruim.

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