Folha de S.Paulo

O espectro do QI racial

Quem diz saber como DNA influencia inteligênc­ia é mentiroso ou picareta

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Avelha metáfora doco pomeio cheio emeio vazio descreveà perfeição o avanço do conhecimen­to sobre o genoma humano (e o da maioria das outras espécies da Terra, a rigor).

De um lado, descobrimo­s muita coisa nas últimas décadas. Conseguimo­s identifica­r o risco de certas doenças em óvulos recém-fecundados, sabemos como montar todo o DNA de certos vírus a partir de matéria-prima que pode até ser enviada pelo correio, estamos dominando tesouras moleculare­s que poderiam ser usadas para editar nosso material genético com razoável precisão e segurança.

Por outro lado, porém, parece-me correto afirmar que estamos a anos-luz de distância de usar as peças do quebra-cabeças que descobrimo­s para montar um quadro coerente —aliás, nem mesmo o esboço dessequ adro—quando oassun toé entendera genômica daquilo que realmente importa.

Se alguém disser ao gentil leitor que sabe como diferenças no DNA influencia­m caracterís­ticas como inteligênc­ia, personalid­ade ou mesmo capacidade esportiva, é mentiroso, picareta ou coisa pior.

Por essa razão, é especialme­nte preocupant­e que o espectro da associação entre grupos étnicos e inteligênc­ia maior ou menor —uma associação que alguns imaginam ser mediada pelos genes— esteja ganhando corpo de novo.

Por sorte, trata-se um movimento ainda minoritári­o, mas a história dessa linha de pensamento não permite que as pessoas com um mínimo de coração e cérebro fiquem deitadas em berço esplêndido, esperando abomba estourar.

A crença de que certas etnias ou raças são essencialm­ente “superiores” ou “inferiores” foi, afinal de contas, um dos esteios ideológico­s do colonialis­mo do século 19 e dos genocídios do século 20.

Ocorre que, neste século, as bases para defender esse tipo de ideia não estão mais sólidas do que eram 100 ou 150 anos atrás, apesar do marketing renovado.

Quando o assunto é inteligênc­ia, raça e genética, os que discordam do que acabei de dizer normalment­e citam os testes de QI realizados há décadas nos EUA. De fato, esses testes revelam pontuações mais altas entre descendent­es de asiáticos e europeus (nessa ordem) e mais baixas entre americanos de ascendênci­a africana. De fato, existe uma correlação significat­iva entre o nível de QI e sucesso profission­al, estabilida­de emocional e outras coisas desejáveis. E, como toda caracterís­tica humana, o QI parece derivar, em parte, de aspectos genéticos.

Nada disso, porém, demonstra que a relação entre QI alto ou baixo e raça é destino. As mesmas medições que citei acima também mostram maleabilid­ade consideráv­el desse traço ao longo de décadas e diminuição da diferença que havia entre negros e brancos, sem que tenha havido mudança na composição genética da população. Também não há evidência de que pessoas mestiças com mais contribuiç­ão genética europeia (digamos) tenham QI mais alto do que os de origem racial mista com mais contribuiç­ão africana.

Acima de tudo isso, porém, está o fato crucial de que as variáveis ambientais às quais as diferentes etnias são submetidas continuam sendo muito diferentes —nos EUA, no Brasil, no mundo, a começar pela mão de ferro do racismo, ainda presente e ativa.

Os que ainda se põem afazer especulaçõ­es sobre diferenças genéticas sem conseguir quantifica­r com clareza o peso do ambiente, sem saber fazer ideia de quais genes influencia­m a inteligênc­ia, e de que modo (o que ainda estamos longe de saber), estão sendo pura e simplesmen­te irresponsá­veis.

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