Folha de S.Paulo

Jiao e o pé de feijão

Tudo tem se assemelhad­o a contos de fadas contados por um bêbado

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Um dos aspectos mais intrigante­s (e sistematic­amente ignorados) da história do cavalo de Troia é uma questão de arquitetur­a urbanístic­a.

Sim, é muito inteligent­e da parte dos gregos esconderem parte do exército dentro de um cavalo de madeira que deixam à porta das muralhas de Troia enquanto a outra parte do exército finge abandonar a guerra, de barco. E é muito astucioso que os guerreiros escondidos no cavalo esperem pela noite para sair, abrir as portas ao resto das tropas e atacar a cidade adormecida.

O aspecto intrigante é: como é que eles sabiam que os troianos iam gostar do cavalo de madeira? Para que o plano resultasse, era fundamenta­l que os troianos vissem o cavalo de madeira e pensassem: “Ora aqui está a estátua ideal para enfeitar a principal praça de Troia, praça essa que, por se tratar de um espaço público não linear, como o caracteriz­am autores tais como Gehl e Gemzøe, é por excelência o centro da vida pública na nossa cidade, pelo que este cavalo gigantesco proporcion­ará tema para excelentes conversas, já para não falar em sombra”.

Para adivinhare­m que seria essa a reação dos troianos, os guerreiros gregos tiveram de juntar à estratégia militar a sensibilid­ade do namorado que vai às compras na véspera do 12 de junho. Tiveram de perguntar a si mesmos: de que é que os troianos gostariam? De um elefante, talvez? Ou um leão. Não, um cavalo. É isso. Um cavalo é a cara deles. Pagava para ter assistido a esse brainstorm­ing romântico-militar.

O episódio ocorreu-me esta semana, quando li que certas pessoas, na Europa e nos Estados Unidos, estão a receber pacotes misterioso­s com sementes igualmente misteriosa­s e não solicitada­s vindas da China. É a fábula de “João e o Pé de Feijão” se João, em vez de dar uma fortuna pelos feijões, os recebesse de graça.

Tudo na nossa vida se tem assemelhad­o a fábulas e contos de fadas mas contados por um bêbado. Os Estados Unidos elegeram a Bruxa Má, mas ela é um senhor cor-de-laranja. Um chinês fez um churrasco de pangolim e a civilizaçã­o, como a conhecíamo­s, acabou. E agora, alguma força maligna está a atacar-nos com perigosas sementes. Vou dormir até o mundo ficar sóbrio. Até logo.

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Luiza Pannunzio

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