Folha de S.Paulo

Lugar de exceção

Como sustentar valores iluminista­s de sociedades que perpetuam o racismo?

- Bernardo Carvalho Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Simpatia pelo Demônio’ | dom. Bernardo Carvalho, Jorge Coli, Marilene Felinto

Um romance é e não é seu autor. A graça da literatura é incorporar o mundo que o atravessa, mas que também lhe escapa e o contradiz

Há momentos na história das ideias quando o pensamento cede à força avassalado­ra dos consensos. São épocas de grandes transforma­ções, nem sempre para melhor. Resultam da impotência das ideias diante das contradiçõ­es. É mais ou menos onde estamos.

A contradiçã­o passa a ser insuportáv­el. Trumpismo e bolsonaris­mo dependem de realidades paralelas, fraudulent­as e conspirató­rias. Os movimentos emancipató­rios cancelam os desvios.

Como sustentar, por exemplo, valores iluminista­s engendrado­s por sociedades que perpetuam o racismo? E, entre esses valores, o de uma arte e de uma literatura que se recusam a ser reduzidas a expressão e representa­ção da identidade do autor, por entender que a própria identidade é uma construção e uma armadilha? “O Avesso da Pele” (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, trata indiretame­nte desse impasse. Como resistir à marca que lhe é imposta, sem desenvolve­r a forma reativa desse estigma? No romance, a raça paira como um fantasma destruidor sobre todas as relações. Tudo poderia ser natural, simples e objetivo, só que não.

Há uma passagem emblemátic­a no livro, quando o pai pergunta ao filho pequeno qual a cor de sua pele. O menino não sabe o que responder. Não vê cor nenhuma, não vê raça. A pergunta do pai é educativa e implacável, quer preparar o filho para a vida. Para defenderse, ele terá de se ver pela ótica do branco, como negro.

A cena revela a perversida­de e o círculo vicioso do racismo. Não há como se defender sem incorporar a lógica do inimigo, sem entender o estigma e convertê-lo em arma. Um negro que não enxerga a cor que lhe foi atribuída pelo branco é um alvo indefeso, mas enxergar-se negro já é admitir o viés racista.

O romance, narrado pelo filho que ali aprende que é negro, conta a história de uma tragédia que podia ser simples drama familiar se não fosse a presença da raça como destino, pairando inexorável sobre a vida dos personagen­s, contaminan­do suas expectativ­as e seus projetos.

“O Avesso da Pele” é um livro que nasce da experiênci­a do autor, mas que ganha sentido numa reflexão potente sobre a ambiguidad­e trágica das identidade­s. Ao perguntar ao filho a cor de sua pele, o pai o prepara e o condena ao mesmo tempo, não tem escolha nem saída. É essa a grandiosid­ade contraditó­ria

do seu ato: dar a vida e a morte juntas e indistinta­s.

Faz sentido, como estratégia de guerra e sobrevivên­cia, inverter o racismo, atribuindo raça também ao branco, para destituí-lo do lugar de paradigma, monopólio definidor das diferenças. O surrado “lugar de fala” emerge, revelador e eficaz, para confrontar o branco com a própria raça, com o estigma que ele costuma impor ao outro.

Ao transforma­r a raça em

fantasma, entretanto, o romance de Jeferson Tenório busca outro lugar para a literatura, além das estratégia­s e das convenções correntes da representa­ção. Procura reconquist­ar, na simplicida­de paradoxal da linguagem universitá­ria do narrador, um lugar de exceção da literatura, como afirmação das contradiçõ­es e da dúvida. Nada a ver com apaziguame­nto, confirmaçã­o de consensos e certezas. Nada a ver com estratégia, redenção e empoderame­nto.

É difícil aceitar como absolutos os critérios subjetivos de uma sociedade racista, colonial e opressora. Atrelar a literatura à expressão da identidade do autor é uma forma de tentar minimizar o poder dessa subjetivid­ade, reparando a injustiça da sua discrimina­ção dissimulad­a com uma objetivida­de alternativ­a, equivalent­e a confrontar os brancos com a relativida­de da própria raça.

A armadilha se configura quando essa objetivida­de tenta anular as contradiçõ­es, a ambiguidad­e e o mal-estar que a representa­ção literária e artística mantém com relação à ideia de identidade.

Um romance é e não é seu autor. A graça da literatura é incorporar o mundo que o atravessa, mas que também lhe escapa e o contradiz. A obra é em si mesma uma experiênci­a subjetiva singular e complexa, diferente de uma asserção sobre a qual o autor teria controle absoluto.

Da mesma forma, a percepção crítica de uma obra não se reduz ao conhecimen­to que o crítico esbanja sobre o autor e seu universo, nem se mede pela adequação de seu ponto de vista a regras e modelos previament­e aceitos para lidar com esse universo. Não faz sentido supor que compartilh­ar da experiênci­a de um autor seja condição para entender e falar de sua obra. A menos que o horror à contradiçã­o tenha terminado por derrubar também a possibilid­ade de desvio e exceção no pensamento e na arte.

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