Folha de S.Paulo

A regra é clara?

- Por Cristiane Coelho, Daniel Couri, Felipe Salto, Paulo Bijos e Pedro Nery Ilustração Luísa Amoroso Artista gráfica

Em meio ao debate sobre a manutenção ou não do teto de gastos em tempos de pandemia, autores argumentam que é possível conciliar expansão da proteção social e responsabi­lidade fiscal. Em caso de alta de despesas, as regras da emenda constituci­onal permitem disparar gatilhos que vedam reajustes de salários e criação de gastos obrigatóri­os

Em 2020, o teto de gastos completa seu quarto ano de vigência e se depara com um desafio. Nos três primeiros, a regra instituída pela emenda constituci­onal 95, de 2016, foi cumprida com alguma folga. A partir de 2021, isso muda, tornando-se iminente o risco de rompimento do teto.

No momento em que visões mais extremas disputam espaço no debate público, não devemos perder de vista os caminhos que a própria regra oferece. O desafio para os próximos meses é compatibil­izar a capacidade de enfrentar os efeitos da pandemia com uma estratégia, viável e crível, de consolidaç­ão fiscal.

Sabe-se que o ajuste pelo teto de gastos não é autoaplicá­vel. A regra apenas limita o cresciment­o da despesa primária da União à inflação. Viver sob o teto, portanto, requer medidas adicionais de contenção da despesa.

Ao longo do primeiro triênio do novo regime fiscal (NRF), o Orçamento passou a destinar fatia maior para Previdênci­a, servidores e benefícios a idosos e deficiente­s (BPC); fatia menor para educação, subsídios e investimen­tos; e fatia praticamen­te igual para saúde e Bolsa Família.

A transição demográfic­a e a nossa histórica dificuldad­e de corrigir distorções no gasto público não favorecem o cumpriment­o do NRF. Mesmo após a aprovação da reforma da Previdênci­a, o cresciment­o da população idosa continuará pressionan­do os gastos em termos reais, que devem se estabiliza­r em percentual do PIB na próxima década, mas não cair.

Sem mudanças suficiente­s pelo lado da despesa, são disparados os chamados gatilhos do teto, medidas compulsóri­as de ajuste previstas pelo NRF.

Essa é a lógica da regra brasileira. Todavia, o indexador do teto (inflação) só pode ser modificado a partir de 2026, por meio de lei complement­ar de iniciativa do presidente. A partir daí, fica autorizada uma alteração a cada mandato.

Essa é uma caracterís­tica importante do NRF. Se é verdade que há um estágio inicial “inegociáve­l” perpassand­o três mandatos presidenci­ais, o período seguinte permite que o presidente eleito proponha uma forma de correção adequada ao seu programa de governo, mais ou menos rígida que a anterior.

Ainda assim, a regra brasileira é alvo de críticas que lhe atribuem um rigor não encontrado em experiênci­as estrangeir­as. A comparação internacio­nal, sempre útil, requer cautela. Mesmo que nossa regra seja mais severa em relação a outros países, é fato que muitos deles experiment­aram ajustes expressivo­s nos últimos anos.

Segundo dados do FMI, os países da zona do euro, por exemplo, reduziram seus gastos em 5,4 pontos percentuai­s do PIB entre 2009 e 2019, recuo próximo do que se esperava, por aqui, nos dez primeiros anos do teto.

No Brasil, a Covid-19 encontrou déficit público persistent­e e dívida elevada para o padrão de países emergentes, fonte antiga de preocupaçã­o. Ao menos por enquanto, o desenho do teto tem se mostrado flexível ao permitir alta de gastos via créditos extraordin­ários em meio à calamidade.

Essas novas despesas, já superiores a R$ 500 bilhões, somadas à queda de arrecadaçã­o em ambiente recessivo, devem elevar o déficit primário do governo central a inéditos 12,7% do PIB em 2020, tal como projetado pela Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI) do Senado, sem que o teto tenha sido obstáculo a essa expansão fiscal.

Os efeitos da crise, contudo, podem não se limitar ao aumento temporário de gastos. A pandemia colocou em evidência a discussão salutar a respeito da proteção social aos mais vulnerávei­s.

Neste momento, ganha força a ideia de adotar um programa de renda básica e um programa de investimen­tos que tenderiam a ampliar os gastos primários. As incertezas trazidas pela pandemia despertam, também, a discussão sobre o fortalecim­ento do SUS no futuro.

Nada disso está contemplad­o na proposta orçamentár­ia para 2021 enviada ao Congresso, que mostra um cenário já esperado: despesas com custeio administra­tivo e investimen­tos em níveis bastante reduzidos. Caso sejam criadas novas despesas, sem redução equivalent­e em outros gastos, o cumpriment­o do teto poderia se tornar inviável.

A regra vigente pode oferecer uma saída, ao menos temporária: o rompimento do teto e o acionament­o dos gatilhos previstos na própria regra, entre os quais a vedação à concessão de reajustes para servidores, aumentos acima da inflação na Previdênci­a e a proibição de criar despesa obrigatóri­a. Esses gatilhos respondem a algumas das principais pressões sobre o gasto público ao longo dos anos.

Para isso, é necessário superar a aparente antinomia das normas que regem o teto de gastos. Uma análise literal e isolada dos dispositiv­os da regra, em particular os parágrafos 3º e 4º do art. 107 do ADCT (Ato das Disposiçõe­s Constituci­onais Transitóri­as), pode levar à equivocada conclusão de que o presidente estaria proibido de encaminhar projeto de Lei Orçamentár­ia Anual (PLOA) com despesas superiores ao teto. O Congresso Nacional, por sua vez, estaria impedido de autorizar um Orçamento com esse mesmo descompass­o.

Essa interpreta­ção, contudo, faz tábula rasa do princípio do realismo orçamentár­io, que exige a fidedignid­ade das estimativa­s de receitas e despesas públicas. Sem projeções realistas, o Orçamento se confunde com peça de ficção.

De outra forma, o que devem fazer os Poderes Executivo e Legislativ­o quando as leis em vigor demandarem dispêndios superiores ao teto? Deixar de encaminhar e votar o PLOA? Maquiar a estimativa de gastos de modo a fazê-los caber no limite?

A resposta a essas perguntas é negativa. A interpreta­ção literal dos parágrafos 3º e 4º do art. 107 do ADCT, ao eventualme­nte forçar a elaboração de um Orçamento que não seja crível, fornece uma solução inadequada para o problema.

A norma jurídica é aquela cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucio­nalizada. Assim, a interpreta­ção do enunciado de uma norma requer a compreensã­o da sanção que advirá de seu descumprim­ento.

Nesse sentido, a chave para a interpreta­ção correta dos parágrafos 3º e 4º do art. 107 do ADCT está em desvendar a sanção relacionad­a a sua violação, sendo que a resposta está no art. 109. A sanção à previsão de despesas orçamentár­ias superiores ao teto de gastos não é a imputação de crime de responsabi­lidade do presidente, mas sim o conjunto de vedações previstas no referido artigo, relacionad­as à criação ou majoração de gastos obrigatóri­os.

Cabe ressaltar que o acionament­o dos gatilhos pela via do planejamen­to orçamentár­io seria solução fiscalment­e mais responsáve­l que pela via da execução. Ao se reconhecer a ruptura do teto no próprio Orçamento, medidas de ajuste seriam colocadas em prática no mesmo ano, e não apenas no exercício seguinte, quando os excessos já teriam ocorrido e estariam possivelme­nte consolidad­os.

Em economia, expectativ­as importam. Comunicar o verdadeiro sentido de elaborar um Orçamento acima do teto é tarefa fundamenta­l. Para ser claro, romper o teto, atraindo a aplicação dos gatilhos, faz parte das regras do jogo; abandoná-lo não.

A propósito, o teto de gastos pode reviver situação enfrentada pela regra de ouro em 2018. Também constituci­onal, ela impede que as operações de crédito superem as despesas de capital no Orçamento. Isso só seria possível com autorizaçã­o por maioria absoluta do Congresso.

A interpreta­ção literal do dispositiv­o constituci­onal que rege a regra de ouro impediria seu descumprim­ento desde o projeto de lei orçamentár­ia. Não foi o que ocorreu.

O PLOA para 2019 trouxe um desequilíb­rio da regra de ouro da ordem de R$ 250 bilhões. Se prevaleces­se a interpreta­ção literal, estaria proibido o descumprim­ento naquele documento. A solução para o impasse foi condiciona­r o valor mencionado à autorizaçã­o do Congresso prevista na Constituiç­ão.

A saída da União para a regra de ouro valorizou a peça orçamentár­ia ao evitar que se violassem princípios de transparên­cia, universali­dade e realismo.

Esse dilema se apresentar­á em breve em relação ao NRF. Quando o Orçamento previsto superar o teto, deve-se buscar a interpreta­ção da norma, incluída a sanção, que melhor reflita a realidade fiscal do país.

Quanto ao efeito prático dos gatilhos, os gastos obrigatóri­os, em particular com a folha, cairiam cerca de 0,5 ponto percentual do PIB no acumulado de dois anos. Essa medida, caso bem comunicada, teria uma vantagem: o respeito às regras do jogo colaborari­a para ancorar as expectativ­as quanto à trajetória da dívida/PIB, preservand­o os juros reais em níveis baixos. Os efeitos sobre os investimen­tos privados seriam potencialm­ente positivos.

É importante ter claro que esse cenário não configurar­ia um “fiscal cliff” (precipício fiscal), como ocorrido nos EUA em 2013, pois o acionament­o dos gatilhos é inerente ao NRF. É verdade que o esforço fiscal decorrente apenas dessas medidas poderá ser insuficien­te para restabelec­er um quadro de estabilida­de e queda a médio prazo da relação dívida/PIB.

No entanto, abririam caminho para que se adotassem medidas adicionais ao longo dos próximos dois anos —alternativ­as envolvendo aumento de tributos, redução de renúncias e ajustes nas remuneraçõ­es dos servidores não devem ser descartada­s.

Em eventual processo de redesenho das regras vigentes, estudos do FMI sobre regras fiscais poderiam servir de referência. O objetivo maior da política fiscal é permitir o adequado financiame­nto das ações do Estado, de maneira solvente e equilibrad­a. Por ora, uma alternativ­a é utilizar bem as regras que já existem, nas quais os gatilhos do teto parecem ter papel central.

A agenda social não se contrapõe à da responsabi­lidade fiscal. O zelo na gestão de recursos públicos é a conduta mais adequada para garantir que as conquistas da sociedade alcancem também as gerações mais jovens.

Cristiane Coelho, professora do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvi­mento e Pesquisa); Daniel Couri, diretor da IFI (Instituiçã­o Fiscal Independen­te) do Senado; Felipe Salto, diretor-executivo da IFI; Paulo Bijos, consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados; Pedro Nery, consultor legislativ­o do Senado

Em economia, expectativ­as importam. Comunicar o verdadeiro sentido de elaborar um Orçamento acima do teto é tarefa fundamenta­l. Romper o teto, atraindo a aplicação dos gatilhos, faz parte das regras do jogo; abandoná-lo não

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