Folha de S.Paulo

AGRICULTOR­ES INVADEM TERRA INDÍGENA NO PARÁ À ESPERA DE REGULARIZA­ÇÃO

Vila Renascer, na Terra Indígena Apyterewa, no Pará, tem cerca de 2.000 casas, além de igrejas, mercado e restaurant­es; moradores relatam que fazendeiro­s cedem lotes ilegalment­e

- Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida

Vila Renascer, ocupação ilegal dentro da Terra Indígena Apyterewa, já tem cerca de 2.000 casas; fluxo cresceu com promessa de Jair Bolsonaro de revisar demarcaçõe­s

terra indígena apyterewa e vila sudoeste (pa) Na Amazônia, currutelas são povoados surgidos na boca da floresta, próximas a garimpo ou desmatamen­to. Criada em 2016, a Vila Renascer não para de crescer. A cada dia, surgem casas, igrejas evangélica­s, bares, restaurant­es, oficina mecânica, posto de gasolina, mercado, postes de rede elétrica e até um pequeno hotel.

Pela lei, no entanto, nada disso deveria existir: o lugarejo está encravado na Terra Indígena (TI) Apyterewa, do povo parakanã, homologada em 2007.

O impasse sobre a presença de não indígenas em Apyterewa se arrasta há décadas. A sua retirada era uma das condiciona­ntes para a licença ambiental para a construção da usina hidrelétri­ca de Belo Monte no rio Xingu.

No governo Michel Temer (MDB), o Ministério da Justiça ignorou determinaç­ão do Supremo Tribunal Federal e paralisou a retirada de posseiros e de invasores de má-fé, ou seja, que entraram na área consciente­s de que se tratava de uma terra indígena.

Após o recuo, houve novas invasões e abertura de garimpos. Esse movimento explodiu no final de 2018 e no início de 2019, com a promessa de Jair Bolsonaro de revisar demarcaçõe­s. O desmatamen­to se alastrou para a TI Trincheira Bacajá, do povo xikrin.

O resultado é que, em 2019, Apyterewa perdeu 8.420 hectares de floresta, comparável a 53 Parques Ibirapuera, a maior taxa de desmatamen­to desde a homologaçã­o há 13 anos. Trincheira Bacajá teve 5.600 hectares desmatados, também a maior perda desde a homologaçã­o, em 1996. Os números são do sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais).

“Quando cheguei aqui, só eram a igreja e uma vizinha”, diz o pastor Valdir dos Santos, 46, na vila há quatro anos. “Graças a Deus, já está chegando a mais de 2.000 casas.”

Natural de Belém, ele trabalhou de início como cabeleirei­ro. Depois, conseguiu lote, onde plantou cacau, mandioca e banana. Também administra uma das quatro igrejas evangélica­s, com 40 fiéis.

O pastor diz que Renascer recebe famílias até de outros estados, com a esperança de regulariza­ção: “O povo daqui acredita nessa fala do presidente”, disse, na varanda do casebre erguido no lote.

Na entrada da casa de madeira onde funciona a Igreja de Missões, Santos colocou faixa com a seguinte passagem bíblica: “Disse: quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus”.

Abastecido por uma rede elétrica ilegal, Renascer se tornou base para invasão e grilagem de terras indígenas. Para penetrar na floresta, os invasores reativaram uma estrada aberta pelos madeireiro­s ilegais de mogno nos anos 1980. A via começa em Apyterewa,

O pastor Valdir dos Santos diz que a Vila Renascer recebe famílias até de outros estados, com a esperança de regulariza­ção: “O povo daqui acredita nessa fala do presidente”

passa pela TI Igarapé Ipixuna, dos índios arawetés, considerad­os de recente contato, e chega até Trincheira Bacajá.

Um morador contou ter adquirido lote a 130 km da vila “na região do Ipixuna”, área dos arawetés. Na estrada de terra de acesso à vila, a reportagem encontrou uma família que, em um Fiat Uno abarrotado, se mudava para a região, após negociar um lote de 163 hectares por R$ 15 mil.

A presença do estado se resume a uma base permanente com funcionári­os da Funai e policiais da Força Nacional, sem poder de interferên­cia nas invasões.

Na área da Apyterewa percorrida pela Folha, predominam pastagens, e o trânsito de caminhões com gado é comum. O município de São Félix do Xingu, onde se localiza grande parte de Apyterewa, concentra o maior rebanho do país, com 2,3 milhões de cabeças em 2018. Em dez anos, o cresciment­o foi de 18%. Os dados são do IBGE.

Por causa da Covid-19, a reportagem não visitou as comunidade­s parakanãs.

A chegada de invasores, geralmente agricultor­es pobres, tem o incentivo de fazendeiro­s com terras dentro de Apyterewa, segundo moradores.

“Cederam, não pegaram nenhum centavo, fizeram foi dar mesmo pra população. Desde que o pessoal começou a entrar, eles começaram a ajudar. Aí foi dividindo, dividindo, até que encheram as áreas”, diz colono Edson de Morais, 51.

Morais citou quatro fazendeiro­s: Paulinho, Joãozinho da Motolândia, seu João, de Palmas (TO), e Ourias. Todos, diz, distribuír­am lotes em quatro áreas dentro de Apyterewa.

O agricultor mora em casa simples de tijolos aparentes na Vila Sudoeste. Trata-se de distrito de São Félix do Xingu surgido a partir de um assentamen­to do Incra. Está a 60 km da Vila Renascer, em área vizinha à Trincheira Bacajá.

Nascido em Goiás, ele conta que há três anos comprou lote de 272 hectares. Doou 54 hectares a dois pastores e desmatou 11, onde tem roça e capim. Afirma que é a primeira vez que possui terra própria.

No ano passado, os xikrins fizeram uma expedição para expulsar os invasores. Destruíram alguns barracos, mas Morais e outros resistiram. Houve também operações da Polícia Federal e do Ibama, baseadas em decisão judicial de reintegraç­ão de posse. O agricultor, no entanto, persiste e confia no atual governo federal.

Uma investigaç­ão recente da Abin (Agência Brasileira de Inteligênc­ia) encontrou casos de colonos coagidos a trabalhar em troca de um lote e de contribuir para uma associação. A área prometida, no entanto, acaba vendida para outro, e o posseiro é expulso.

Em junho do ano passado, um dos principais líderes da grilagem de Apyterewa, Carlos Cabral, foi assassinad­o em Rio Maria (PA). Na época, a Polícia Civil decretou a prisão temporária de três fazendeiro­s acusados de promover grilagem. Foram apreendida­s cerca de 40 armas de fogo, além de munição.

A redução da TI Apyterewa, com 773 mil hectares, tem sido defendida por associaçõe­s lideradas por fazendeiro­s. A iniciativa conta com apoio jurídico da Prefeitura de São Félix do Xingu, comandada por Minervina Barros (PSD).

Em maio, eles obtiveram vitória parcial no STF. O ministro Gilmar Mendes intimou a União “sobre o interesse na tentativa de conciliaçã­o proposta pelo município de São Félix do Xingu”. A decisão faz parte de mandado de segurança impetrado em 2007 pela prefeitura e pelas associaçõe­s.

A ação questiona a homologaçã­o da terra indígena. Para o procurador do município

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Lalo de Almeida/Folhapress
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