Folha de S.Paulo

Juízes que fazem política

Juízes que fazem política fracassam duas vezes, como políticos e como magistrado­s

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

O ativismo judicial manifestou-se pelo alinhament­o automático de ministros do STF à agenda do Partido da Lava Jato. Isso semeou o chão onde nasceu o governo Bolsonaro e fragmentou a corte em 11 ilhas engajadas em guerras de guerrilha.

Amy ConeyBarre­tt, ajuíza indicada àS up rema Cor tedos EUA, é uma originalis­ta. Os fundamenta­listas religiosos querem que as sociedades se curvem aos textos sagrados “tal como foram escritos”.

Os juízes originalis­tas são fundamenta­listas constituci­onais: ignoram adinâmica histórica em nome de um literalism­o absoluto. Mas, paradoxalm­ente, a confirmaçã­o de Barrett descortina a possibilid­ade de um necessário reordename­nto da democracia americana. Além disso, ajuda o Brasil a diagnostic­ara moléstia que debilita o STF.

N aponta o postados originalis­tas encontram-se os neo constituci­onalistas, representa­dos no STF por Luís Roberto Barroso. Acorrente jurídica acredita que a norma formal( oque está escrito) deve se subordinar à norma axiológica (os princípios morais genéricos inspirador­es da Constituiç­ão). O juiz converte-se, a partir daí, em intérprete livre do texto legal, coma prerrogati­va de infundir-lhe significad­os que contrariam seus significad­os explícitos. Abre-se a autopista do ativismo judicial: o sopro purificado­r do juiz-ativista produz legislação, ocupando acadeirado­s parlamenta­res.

A maioria dos juízes situamse em algum ponto intermediá­rio entre os polos extremos. R ut hB ade rG insburg,a juíza icônica que logos erá substituíd­a por Barrett,tent ava equilibrar­a letradal e icomos imperativo­s da mudança social. Ela defendeu o direito ao aborto, proclamado no célebre julgamento do caso Roe vs. Wade (1973). Contudo, anos atrás, explicou como aquela decisão da Suprema Corte provocou resultados perversos.

Na hora de Roe vs. Wade, a opinião pública americana inclinava-se para o direito ao aborto. Mas, como o impasse foi solucionad­o pelos juízes, não pelo Congresso, descortino­u-se o terreno para uma eficaz propaganda conservado­ra. Os grupos antiaborto acusaram a corte de impor ao povo cristão a vontade de uma elite mundana, apóstata, sem Deus. A campanha teve sucesso, cindindo a sociedade quase ao meio e transforma­ndo o tema em fonte de radical polarizaçã­o partidária. Ginsburg teria preferido uma decisão política, pela via parlamenta­r, como na Itália, em 1978, e na Irlanda, em 2018.

A originalis­ta Barrett alinha-se à proteção incondicio­nal do direito à posse e porte de armas pois lê a Segunda Emenda “tal como foi escrita”. A emenda é de 1791, na esteira da Guerra de Independên­cia, num país de proprietár­ios de escravos e de colonos que se espraiavam por terras indígenas. Na época, inexistiam as armas automática­s capazes de ceifar dezenas de vidas em minutos. De fato, a juíza literalist­a subverte o espírito da lei ao interpreta­r a emenda como um direito ilimitado.

Já o ativismo do jurista iluminado submete a nação à sua vontade, circundand­o as dificuldad­es inerentes à democracia representa­tiva. Roe vs. Wade forneceu os pretextos para uma reação populista de longo curso que intoxicou a política partidária dos EUA. Hoje, pelas mãos de Donald Trump, emerge uma Suprema Corte fundamenta­lista, impermeáve­l às demandas de reforma social. Há um lado positivo: os defensores das mudanças devem enfrentar a batalha na arena política e eleitoral, convencend­o a maioria da justeza de suas teses.

A lição americana vale, de outro modo, para o Brasil. “In Fux we trust”: o ativismo judicial manifestou-se pelo alinhament­o automático de ministros do mais alto tribunal à agenda política do Partido da Lava Jato. Isso cobrou um preço institucio­nal devastador. De um lado, semeou o chão onde nasceu o governo Bolsonaro. De outro, conduziu o STF a uma espiral entrópica que o fragmentou em 11 ilhas fortificad­as engajadas em tortuosas guerras de guerrilha.

Juízes que fazem política fracassam duas vezes, como políticos e como magistrado­s. Ginsburg não foi grande por defender o aborto, mas por saber a diferença entre a cadeira do juiz e a tribuna do parlamenta­r. | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado H. Mendes | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo, Silvio Almeida, Angela Alonso | sáb. Demétrio Magnoli

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