Folha de S.Paulo

Vigilância no lugar de proteção

- Bruno Boghossian

A Agência Nacional de Proteção de Dados é independen­te, com função de implementa­r e fiscalizar lei criada para preservar os dados dos cidadãos. Sua militariza­ção pode transformá-la em ferramenta de vigilância.

brasília Um dia depois de anunciar um general da reserva como vice, Jair Bolsonaro avisou que não pretendia parar por ali. “Vai ter um montão de ministro militar”, disse o então candidato, em agosto de 2018.

Homens de farda no primeiro escalão do governo eram, portanto, favas contadas. Mas a história completa dessa ocupação mostra um avanço maior sobre áreas estratégic­as da máquina federal.

O espaço se ampliou na última quinta-feira (15), quando o presidente nomeou três militares entre os cinco novos diretores da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados). O órgão não tem relação direta com as carreiras das Forças Armadas, mas já se sabe que esse não é um critério adotado pelo Palácio do Planalto.

No papel, a agência é uma instituiçã­o independen­te, com a função de implementa­r e fiscalizar o cumpriment­o da lei criada para preservar os dados dos cidadãos.

Mesmo antes do anúncio da escalação da diretoria, especialis­tas e consultore­s advertiam que a militariza­ção do órgão poderia transformá-lo numa ferramenta de vigilância, e não de proteção.

A surpresa foi grande porque os alertas se deram a partir de boatos de que haveria um único integrante da caserna entre os cinco diretores. O presidente Bolsonaro triplicou o receio ao mandar “um montão de militares” para o comando da agência.

Pertencer aos quadros das Forças Armadas não torna ninguém um proscrito em outras áreas do serviço público, mas algumas caracterís­ticas levantam o temor de um aparelhame­nto do órgão de proteção de dados. Entre elas está uma possível confusão entre as atividades de vigilância e de segurança nacional típicas dos militares, de um lado, e a missão da agência de defender a privacidad­e dos cidadãos, de outro.

Há conselheir­os fardados nos órgãos responsáve­is pela proteção de dados na Rússia e na China, onde as ferramenta­s de espionagem são tradiciona­lmente militariza­das. Segundo um levantamen­to da organizaçã­o Data Privacy Brasil, noticiado pela Folha, esses são alguns dos poucos países desenvolvi­dos com essa caracterís­tica.

A nomeação de militares era uma promessa de campanha de Bolsonaro, mas o alargament­o de sua influênto cia se deu ao longo dos 22 meses de mandato até aqui. Em alguns casos, as escolhas levantaram questionam­entos sobre a compatibil­idade dos ocupantes com seus cargos.

Na campanha, o então candidato dizia que levaria em conta a competênci­a e a habilidade dos homens e mulheres de farda para cada área do governo. “Tem ministério em que não cabe militar, porque não temos vivência nisso ”, afirmou, ainda em 2018. Essa linha de corte ficou pelo caminho.

Bolso narocheg ou anomear um integrante das Forças Armadas para cuidar da reforma agrária e viu achegada de outros ao Ibama. Pouco depois demandar o general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde, declarou: “Vai botar mais militares, sim. Com civis não deu certo. E ponto final”.

O presidente tem até cinco razões diferentes para nomear militares para postos estratégic­os —e nenhuma delas combina com uma autoridade estatal de proteção de dados.

A primeira vantagem que Bolsonaro extrai dessa ocupaçãoéa relação de hierarquia. Ao escolher um general da ativa para o Ministério da Saúde, ele conseguiu determinar­a recomendaç­ão da hidroxiclo­roquina como política de governo, contornand­o a resistênci­a dos antigos titulares civis da pasta.

O governo também usa a categoria para dar peso a suas ações de monitorame­nto, o que ficou explícito com o aumento da presença de militares na Abin (Agência Brasileira de Inteligênc­ia).

Além disso, aproveita a trajetória de alguns personagen­s para dar um verniz técnico a setores como o Ministério da Ciência e Tecnologia, comandado pelo astronauta Marcos Pontes, tenente-coronel da Força Aérea.

A quarta razão atende diretament­e a Bolsonaro. Ele escolheu para sua administra­ção nomes com os quais tem uma relação pessoal, construída em seu passado no Exército, como o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).

Por fim, a escalação de servidores que seguem a doutrina da caserna também facilita o alinhament­o com muitas das posições ideológica­s do presidente.

Essas motivações podem servir politicame­nte ao presidente e até produzir benefícios colaterais em áreas ligadas à engenharia e à logística, por exemplo. No caso de áreas técnicas e independen­tes, é mais difícil enxergar o interesse público nas nomeações.

A nomeação de militares era uma promessa de campanha de Bolsonaro, mas o alargament­o de sua influência se deu ao longo dos 22 meses de mandato; o presidente tem até cinco razões para nomear militares para postos estratégic­os —e nenhuma delas combina com uma autoridade estatal de proteção de dados

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