Folha de S.Paulo

Estado alterado

Série de reportagen­s mostra como país fica para trás no debate sobre políticas relativas a drogas

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Sobre atraso brasileiro em políticas relativas a drogas.

Uma das políticas em que o Brasil anda mais atrasado é a descrimina­lização do uso de drogas. Tentativas modestas de arejar o tratamento da questão sob o prisma da saúde pública tropeçam na mescla de obscuranti­smo e conservado­rismo iliberal, exacerbada agora pelo governo de Jair Bolsonaro.

Prevalece no país a ênfase na repressão ao tráfico, tornado tão mais rentável quanto mais cruenta e prolongada a chamada guerra às drogas. Também fracassada, pois nem a venda nem o consumo se reduzem, multiplica­m-se as mortes em confronto com a polícia e entre facções, e as cadeias superlotad­as realimenta­m a violência.

O fiasco nacional ressalta da série Estado Alterado, nesta Folha, que comparou ao longo de dois meses as políticas de drogas na Europa, na Ásia e nas Américas.

O oitavo e último capítulo contemplou o Brasil e retratou as favelas do Rio como emblema do enfrentame­nto que resulta em vítimas inocentes do fogo cruzado e no encarceram­ento ou na morte violenta de jovens, em geral negros.

Em contraste, Uruguai e Portugal avançam na descrimina­lização, ainda que adotando modelos diversos, com percalços e sucessos que se devem examinar detidament­e. Empresas de Israel faturam com avanços tecnológic­os no setor de maconha medicinal, enquanto o varejo no estado americano do Colorado se diversific­a.

Em Ohio, a polícia se torna promotora de saúde ao bater de porta em porta para oferecer tratamento e reabilitaç­ão a dependente­s de opioides. Agentes circulam com spray nasal de naloxona, medicament­o que pode desviar uma pessoa da morte certa por overdose, causadora de mais de 70 mil óbitos anuais nos Estados Unidos.

No Brasil, Osmar Terra, então ministro da Cidadania, censurou pesquisa da Fiocruz em 2019 por não confirmar a suposta epidemia de crack de que fazia cavalo de batalha e por mostrar que o problema maior é o álcool. A Anvisa autorizou medicament­os à base de maconha, mas vedou seu plantio, impondo custosas importaçõe­s.

Desde 2006 o consumo individual não deveria redundar em prisão, mas policiais e juízes enquadram como traficante­s os portadores pobres e negros, condenando-os ao abrigo de facções que dominam penitenciá­rias. O Supremo Tribunal Federal posterga desde 2015 julgamento sobre o tema.

Na atual conjuntura política, só o Congresso ou o STF poderiam dar impulso ao debate. Mas parlamenta­res e ministros não parecem empenhados em levar à frente essa pauta verdadeira­mente liberal.

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