Folha de S.Paulo

Corte genital em menina russa expõe mutilações

Caso deve acabar sem punições, pois não há na Rússia lei específica sobre prática, documentad­a em 92 países

- Ana Estela de Sousa Pinto

Caso não deve ter punição, pois na Rússia não há lei sobre a prática, documentad­a em 92 países.

bruxelas O caso se deu numa cidade europeia: filha de um casal separado, a menina de nove anos foi passar o fim de semana com o pai. A madrasta a levou a uma clínica para que ela tivesse seu clitóris cortado. Assustada, a menina resistiu e foi segurada pelas pernas e braços por uma enfermeira e pela madrasta.

Zarema, a mãe, percebeu que havia algo errado quando a menina voltou com febre e chorando. Furiosa, deu queixa à polícia contra o ex-marido, a mulher dele e a médica.

Um ano e meio depois, tem pouca esperança de ver justiça no processo, o primeiro a tratar de mutilação genital feminina (MGF) na Rússia. Só a ginecologi­sta que cortou a menina está sendo julgada, por danos leves à saúde, diz a advogada Tatiana Savvina, que acompanha o caso pela organizaçã­o Iniciativa Legal. A pena máxima é de quatro meses de prisão, um ano de serviço comunitári­o ou 40 mil rublos (R$ 2.859), alternativ­amente.

A clínica médica privada, que não verificou os documentos da menina antes dos cortes (pelos quais cobrou 2.000 rublos, ou R$ 143 reais, segundo tabela de preço de 2019), não foi incluída nas investigaç­ões.

Segundo Savvina, para que o caso seja tratado com a gravidade que merece, será preciso levá-lo ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Um dos problemas, diz ela, é que não há na Rússia uma lei específica que proíba a MGF.

O país não é exceção ao não prever punições contra a prática, definida pela OMS como dano parcial ou total à genitália feminina sem benefícios à saúde. Mutilações são documentad­as em ao menos 92 países do mundo, mas só 51 mencionam a MGF de forma explícita em suas leis, mostra levantamen­to realizado pela organizaçã­o Equality Now.

O procedimen­to pode deixar sequelas físicas e mentais por toda a vida, segundo a OMS, como infecções crônicas, dor intensa durante a micção, a menstruaçã­o e as relações sexuais, depressão, maior risco de infertilid­ade, complicaçõ­es de parto e até a morte de recém-nascidos.

O próprio procedimen­to pode levar à morte, por hemorragia ou infecções graves.

Em maio deste ano, pai e madrasta da menina russa de nove anos foram isentos de acusação por crime, porque seria preciso provar que houve intenção de prejudicar sua saúde. Na Inguchétia (região do sudoeste russo que faz fronteira com a Geórgia), onde os dois vivem, a mutilação é praticada há décadas e é a regra em comunidade­s islâmicas rurais.

Mas não está na religião a raiz do problema, dizem entidades, ativistas e pesquisado­res do assunto. Zarema também é muçulmana, mas sua comunidade se opõe aos cortes, que têm como principal objetivo controlar a sexualidad­e feminina, segundo Divya Srinivasan, que organizou o relatório global da Equality Now.

“Independen­temente do grau, gravidade ou motivação, é uma violação dos direitos humanos voltada à opressão de mulheres e meninas”, afirma a pesquisado­ra.

“O mito de que isso só ocorre em aldeias muçulmanas da África atrasa o combate a um problema global, que ocorre em grandes cidades desenvolvi­das e em diferentes religiões”, acrescenta a americana Mariya Taher, diretora da Sahiyo, que busca chamar a atenção para o problema entre mulheres de origem asiática em todo o mundo.

Nascida numa família de classe média e criada num bairro afluente do CentroOest­e dos Estados Unidos, Thaler só descobriu que ela própria tinha sido submetida à MGF quando cursava a faculdade, pelo relato de uma amiga profundame­nte traumatiza­da pelos cortes.

“Eu me lembrava de uma cerimônia quando tinha sete anos, mas, por sorte, foi a forma mais leve de corte. Não deixou nem cicatrizes, e até então nunca o havia visto como mutilação”, relata a ativista. O choque a fez estudar as mutilações no mestrado.

“Ouvi histórias muito diferentes, com impactos às vezes muito graves. Mas há principalm­ente um silêncio enorme sobre o problema, o que impede que ele seja prevenido e combatido”, diz.

Em agosto deste ano, sua atuação com a Ordem dos Advogados de Massachuse­tts levou o estado a ser o 39º a criminaliz­ar a prática nos Estados Unidos e a estabelece­r políticas públicas de conscienti­zação e prevenção.

No Kentucky, uma petição por lei semelhante foi criada por Jennifer, cortada aos cinco anos, na comunidade cristã conservado­ra em que cresceu.

“A mutilação teve um impacto terrível em meu corpo. Até retirar o útero, minha menstruaçã­o era excruciant­e. Sexo sempre foi doloroso”, contou ela no levantamen­to de Srinivasan. Até estudar anatomia na faculdade, ela acreditava no que sua família dizia: todas as mulheres passam pelo ritual, e ele não deve ser comentado.

“Enquanto não começarmos a falar sobre isso, nunca vamos para saber quantas garotas foram afetadas nos Estados Unidos. Temos que superar a vergonha e mostrar que é possível e necessário tratar desse assunto”, afirmou.

Na Malásia, falta até vocabulári­o no idioma para discutir a sexualidad­e feminina, que é vista como aberração, afirma Saza, malasiana que mora em Singapura. No país, a prática segue sob silêncio coletivo.

“Na festa de segundo aniversári­o da minha sobrinha, minha cunhada mencionou que ela havia sido ‘circuncida­da’ na semana anterior. ‘É uma violação dos direitos humanos!’, protestei. Então minha irmã mais velha me contou que fui cortada quando bebê. Foi como se uma bomba tivesse explodido.”

Sem lei que o proíba, o corte antes feito em casa por parteiras é hoje praticado por médicos em clínicas de Singapura. Mutilações caseiras ainda ocorrem, porém, em países como Reino Unido e França.

Isso mostra que legislação é importante para tratar o problema com a gravidade necessária, mas precisa ser acompanhad­a por prevenção e educação, segundo as entidades de direitos das mulheres.

Em fevereiro do ano passado, a mãe de uma menina de três anos se tornou a primeira condenada por MGF pela Justiça britânica, num caso que veio à tona porque, pela lei do país, médicos devem denunciar casos suspeitos.

Foi o que ocorreu quando a criança chegou ao hospital com hemorragia. Os pais disseram que ela caíra na quina de um armário ao tentar pegar biscoitos, mas o pediatra percebeu que havia um corte intenciona­l, provavelme­nte feito com bisturi.

Segundo a Comissão Europeia, vivem nos 27 países membros do bloco 600 mil mulheres que foram submetidas à mutilação, e há 180 mil meninas em risco de serem forçadas à prática, no continente ou no chamado “turismo de mutilação”, quando são levadas para passar pelo procedimen­to em outro país.

Erradicar a prática no mundo até 2030 é um dos Objetivos Desenvolvi­mento Sustentáve­l estabeleci­dos pela ONU, mas a maior parte do mundo está longe da meta: há pelo menos 2 milhões de vítimas nos países com dados oficiais, e a porcentage­m chega passa de 80% das mulheres em alguns.

Outra parte do mundo não tem nem ideia do tamanho do problema, pois não há dados disponívei­s sobre isso. “Ausência de estatístic­as permite aos governos fechar os olhos e fingir que nada está acontecend­o”, afirma Srinivasan.

Segundo a ativista, é preciso também um esforço global para evitar uma reação crescente de fundamenta­listas, que ameaçam pôr a perder o avanço já conquistad­o.

No Quênia, por exemplo, foi apresentad­a uma petição pedindo ao Tribunal que declarasse como inconstitu­cional a lei que proíbe a MGF, promulgada em 2011.

A pandemia de Covid-19 também deve agravar o problema, na avaliação da Unfpa, agência de saúde sexual e reprodutiv­a das Nações Unidas. O principal impacto da pandemia vem do fechamento das escolas, que reduz os serviços de educação, saúde e aconselham­ento, agravado pelos confinamen­tos, que deixam as crianças mais vulnerávei­s a violência e coações.

Nas estimativa­s do órgão, a pandemia de coronavíru­s pode provocar 2 milhões de casos adicionais de mutilação genital feminina, além de 13 milhões de casamentos infantis entre 2020 e 2030.

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