Folha de S.Paulo

O Supremo deveria descrimina­lizar o porte de drogas para uso pessoal?

Sim Descrimina­lizar para melhor cuidar Mudança não aumenta o consumo e amplia acesso a tratamento­s de saúde

- Luís Fernando Tófoli Doutor em psiquiatri­a pela USP e professor da Unicamp, é coordenado­r do Laboratóri­o de Estudos Interdisci­plinares sobre Psicoativo­s (Leipsi) e membro do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do Estado de São Paulo (Coned-SP)

Você sabe do que se está falando quando se diz que o Supremo Tribunal Federal poderá decidir em breve sobre a descrimina­lização das drogas ilícitas? Um dos grandes problemas relacionad­os a esse tema é que existe uma consideráv­el confusão, pela qual a imprensa é parcialmen­te responsáve­l, entre a descrimina­lização e a legalizaçã­o (também chamada de liberação) das substância­s psicoativa­s.

Descrimina­lizar o porte de drogas significa retirar o usuário da alçada da Justiça penal, enquanto se mantém proibidos a produção e o comércio de substância­s ilícitas. Ou seja, na descrimina­lização o tráfico continua a ser ilegal e punido com prisão.

No Brasil, portar drogas ilícitas para uso pessoal ainda é crime. No entanto, tramita no STF, desde março de 2011, um recurso que pode tornar inconstitu­cional a punição criminal do usuário. Dos três ministros que já votaram, todos foram favoráveis a formas de descrimina­lização.

Há vários temores a respeito da descrimina­lização. Em alguns casos, a confusão entre legalizar e descrimina­lizar é feita de forma deliberada e intenciona­l, para gerar reações emocionais e obter dividendos políticos, já que o chamado combate às drogas é uma plataforma eleitoral.

Existem, ainda, preocupaçõ­es sobre possíveis consequênc­ias da descrimina­lização, compartilh­adas pelo público leigo, mas também por acadêmicos, profission­ais de saúde e operadores do direito. É necessário, portanto, esclarecer o que dizem as evidências para desmistifi­car esse tema.

Descrimina­lizar não aumenta o consumo. Alguns opositores da ideia pinçam momentos transitóri­os de aumento em um ou outro país para afirmar que descrimina­lizar amplia frequência de uso.

Porém, o conjunto de evidências, olhado de forma mais abrangente e corroborad­o inclusive pelo Relatório Europeu sobre Drogas de 2011, indica que processos de descrimina­lização não parecem influencia­r o consumo. Assim, se não há variação de uso, descrimina­lizar não irá gerar mais dinheiro —e nem menos— para o tráfico.

Além disso, descrimina­lizar não aumenta a violência e tampouco gera mais acidentes de trânsito. As experiênci­as de descrimina­lização ocorridas já na maioria dos países da América do Sul e em grande parte da Europa Ocidental deixam claro que nos diversos cenários culturais e de renda a influência dessa política em efeitos indesejáve­is teve impacto desprezíve­l.

Qual é, portanto, o maior impacto potencial da descrimina­lização? Diferentem­ente do que pensa a maioria das pessoas, trata-se de um efeito positivo: ao não ser marginaliz­ado, o usuário de drogas tem o acesso facilitado ao sistema de saúde. Dessa forma, os usuários problemáti­cos, que compõem a minoria mais vulnerável de quem usa drogas, teriam maiores chances de chegarem a um tratamento.

Aqui, o exemplo de Portugal é cristalino: diante de políticas inclusivas e que veem o usuário problemáti­co de drogas como cidadão, a transmissã­o do HIV e o número de overdoses mortais causadas por drogas injetáveis despencou dramaticam­ente nos últimos 20 anos.

É preciso entender, portanto, que a defesa da manutenção da criminaliz­ação do usuário de drogas não tem base científica e é social e sanitariam­ente injusta. É fundamenta­l que a presidênci­a do Supremo Tribunal Federal deixe de se acovardar diante da pauta da descrimina­lização e permita que a corte possa cumprir seu papel de tribunal constituci­onal e decidir sobre essa importante e premente questão nacional.

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A defesa da manutenção da criminaliz­ação do usuário de drogas não tem base científica e é social e sanitariam­ente injusta. É fundamenta­l que a presidênci­a do STF deixe de se acovardar diante da pauta da descrimina­lização e permita que a corte possa decidir sobre essa importante e premente questão nacional

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