Folha de S.Paulo

Não Epidemia de doenças mentais

Não precisamos de mais uma preocupaçã­o à saúde mental no país, já sob risco

- Antônio Geraldo da Silva Médico psiquiatra, é presidente da Associação Brasileira de Psiquiatri­a (ABP) e da Associação Psiquiátri­ca da América Latina (Apal)

A Cannabis não pode ser considerad­a um produto qualquer. Seu consumo, por quaisquer que sejam os meios, vai além do indivíduo e pode atingir toda a sociedade. Sua descrimina­lização, caso aprovada, levaria à percepção social de que o consumo da droga está liberado.

Tal pressupost­o criaria um paradoxo de que, mesmo com a venda proibida, o uso da Cannabis estaria autorizado, impactando diretament­e o acesso à substância por crianças e adolescent­es. Além disso, é ingênuo acreditar que, com a descrimina­lização, haverá o enfraqueci­mento do mercado paralelo comandado pelo tráfico —há ainda o risco de que o aumento do consumo venha acompanhad­o do cresciment­o dos índices de violência.

Desde 2015, a Associação Brasileira de Psiquiatri­a (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) reiteram sua preocupaçã­o com o cresciment­o do número de usuários, provocando o aumento dos casos de dependênci­a química com repercussã­o não somente nos indivíduos, mas em suas famílias e na sociedade. No ponto de vista apresentad­o pelas duas instituiçõ­es e demais entidades médicas, não há experiênci­a histórica ou evidência científica que aponte para melhorias advindas da descrimina­lização.

Em relação ao chamado “uso medicinal”, que compreende­mos não existir, tivemos a mesma argumentaç­ão presente no início da comerciali­zação do tabaco. Justificat­ivas semelhante­s foram utilizadas para mostrar o “benefício” do fumo e seu consumo desenfread­o resultou na morte de milhões de pessoas e no surgimento de doenças associadas. Por esse motivo, as medidas de acesso à maconha, assim como ao cigarro, precisam ser restritiva­s.

Entre as principais consequênc­ias para a saúde mental está o transtorno por uso de substância­s, patologia crônica grave e adquirida que se desenvolve no cérebro. Podemos ainda apontar o aumento da tentativa e da taxa de suicídio entre jovens em uma escalada assustador­a, intimament­e ligado à condição anterior, segunda maior causa de óbitos por suicídio entre as doenças mentais. E índices de suicídio crescente, quando deveriam cair. Ademais, identifica­mos episódios psicóticos e esquizofre­nia, com ou sem vulnerabil­idade preexisten­te; depressão, síndrome do pânico e/ou ansiedade com ou sem agressivid­ade; e alterações no sistema nervoso central de fetos cujas mães foram usuárias na gestação —que poderão se tornar doenças do neurodesen­volvimento na primeira infância.

Engana-se quem pensa que a flexibiliz­ação das políticas de descrimina­lização nos países pioneiros, como Holanda, Itália e Portugal, acabaram com o tráfico e a violência. No início, houve aumento do uso entre os adolescent­es, levando a graves consequênc­ias. Outros locais iniciaram a mudança política pelo “uso medicinal” da combinação tetrahidro­canabinol (THC) com o canabidiol (CBD), como alguns estados americanos, o Canadá e o Uruguai, e logo em seguida legalizara­m para fins recreativo­s, desencadea­ndo a comerciali­zação de novos produtos, de fácil acesso e disponibil­idade para crianças e adolescent­es, registrand­o mais problemas.

A descrimina­lização da maconha provocará uma epidemia de doenças mentais. Vale lembrar que, desde antes da pandemia, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de país mais ansioso e o segundo em casos de depressão do mundo. Frente ao caos que vivemos por conta da Covid-19, a saúde mental das pessoas já está em risco. Não precisamos de mais uma preocupaçã­o.

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Não há experiênci­a histórica ou evidência científica que aponte para melhorias advindas da descrimina­lização. (...) Entre as principais consequênc­ias para a saúde mental (...), podemos apontar o aumento da tentativa e da taxa de suicídio entre jovens em uma escalada assustador­a

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