Folha de S.Paulo

Entre progressis­tas e moderados, Biden tergiversa sobre ampliar Suprema Corte

Partido Democrata debate se tentar ampliar número de juízes do tribunal é antidemocr­ático

- Anna Virginia Balloussie­r

rio de janeiro “Meu desejo mais fervoroso é não ser substituíd­a até o novo presidente tomar posse”, disse Ruth Bader Ginsburg dias antes de morrer e deixar vaga a cadeira que ocupou por 27 anos na Suprema Corte dos EUA. Donald Trump não lhe concedeu a cortesia e indicou a conservado­ra Amy Coney Barrett para o lugar desta que foi uma das vozes mais progressis­tas que já passaram pelo tribunal.

Agora, democratas têm um dilema pela frente: se Joe Biden, o presidenci­ável deles, ganhar em novembro, poderá aumentar o número de juízes e impedir a supermaior­ia conservado­ra que deve ser formada com a chegada de Barrett à corte. Católica fervorosa, ela deve ser confirmada em uma votação prevista para o fim de outubro a sexta componente da ala mais à direita da casa, contra três inclinados a posições progressis­tas.

A manobra é permitida, já que a Constituiç­ão americana não fixa um número para o tribunal. Mas seria moralmente legítima? Cresce entre democratas a ideia de que sim. Do aborto à união homoafetiv­a, a mais alta instância da Justiça, com cargos vitalícios, dá a palavra final sobre temas que afetam gerações. E antes que os acusem de serem maus perdedores, a resposta vai na linha de “os republican­os é que começaram”.

Ginsburg morreu a 45 dias da eleição, e Trump se apressou em preencher seu posto. Pior, dizem os opositores: o fez na condição de “pato manco”, expressão que caracteriz­a um presidente em fim de mandato, com poder já claudicant­e.

Barack Obama se viu na mesma situação em 2016. Tentou emplacar o sucessor do juiz Antonin Scalia, ultraconse­rvador e mentor de Barrett, morto nove meses antes do pleito que consagrari­a Trump. Sem sucesso: os republican­os barraram a indicação, alegando que a escolha deveria caber ao próximo presidente.

Democratas argumentam: por que desta vez é diferente?

Biden poderia dizer, para justificar a ampliação da Suprema Corte, que republican­os roubaram uma vaga no tribunal ao se recusar a sabatinar o nomeado de Obama. É essa linha de raciocínio que vem sendo adotada pelo quinhão mais progressis­ta do Partido Democrata.

Biden não faz parte dele e, em 2019, disse “não ser um fã” da estratégia. “Adicionamo­s três juízes, e aí, da próxima vez que perdermos, eles acrescenta­m outros três. Começamos a perder qualquer credibilid­ade que a corte tenha.”

A convicção esmoreceu com a mudança de ventos políticos. Questionad­o sobre o assunto após a morte de Ginsburg, o candidato se esquivou. “Digamos que eu responda essa pergunta. Aí todo o debate será sobre o que Biden afirmou ou não.” Na quinta (15), já mudou o tom e disse que sua posição depende de como a sabatina de Barrett no Senado se desenrolar­ia. Pressionad­o a explicar o que exatamente quis dizer, Biden afirmou que aguardaria para ver “se haverá debate real” na Casa, de maioria republican­a.

Respostas evasivas são atribuídas ao equilíbrio que Biden busca entre não contrariar a ala mais progressis­ta de seu partido sem chamuscar sua reputação como um moderado que pode atrair o eleitor republican­o menos estridente.

Biden diz ainda que embarcar nesse debate seria “uma bem-vinda distração” para Trump, que tem interesse em tornar o tema um calcanhar de Aquiles da campanha rival.

A questão também apareceu no debate entre vice-presidenci­áveis, quando o republican­o Mike Pence armou a emboscada para sua rival, Kamala Harris. “Este é o clássico caso de se você não pode ganhar pelas regras, mude as regras.” Com uma virada dramática para a câmera, Pence continuou: “Os americanos realmente querem saber”.

Ficarão querendo, porque Harris tergiverso­u. “O povo está votando agora, e eles que deveriam decidir quem vai servir à mais importante corte por toda uma vida.”

A base democrata à esquerda é menos escorregad­ia. Caso da deputada Alexandria Ocasio-Cortez. “Devemos deixar todas as opções em aberto, inclusive o número de juízes na Suprema Corte.” O deputado Joe Kennedy 3°, sobrinho-neto de JFK, mediu ainda menos as palavras.

“Se [Trump] nomear em 2020, a gente aumenta em 2021. Simples assim.” Simples, para Henry Olsen, do Centro de Ética e Políticas Públicas, é quão “horrível esta ideia é”, título de um artigo seu para o jornal The Washington Post.

Para Olsen, dilatar a corte estabelece­ria a norma de que, “quando a oposição controla a maioria do tribunal, é legítimo para o partido no poder adicionar quantos membros forem necessário­s para garantir que os amigos do governo o controlem”. “Praticamen­te todas as tiranias insistem que o Judiciário esteja sujeito à vontade do governo.”

O cientista político Robert Shapiro, da Universida­de Columbia, diz à Folha que entende a urgência dos democratas em evitar um desequilíb­rio ideológico. “Mas não é uma boa jogada, pois mexe numa composição intacta por muitos anos”, pondera. “A ampliação do tribunal foi rejeitada pelo público quando Franklin Roosevelt tentou fazê-la.”

De fato, Roosevelt tentou passar lei que poderia adicionar até seis juízes. O plano nunca vingou. A quantidade de magistrado­s na Suprema Corte, que no primeiro século da Constituiç­ão americana mudou seis vezes, permanece inabalável desde 1869.

Quem concordava com ela e criticava conversas sobre mexer na composição era Ruth Bader Ginsburg. “Nove me parece um bom número. Tem sido assim há muito tempo”, ela disse no ano passado, numa entrevista à rádio NPR em que também se disse “muito viva”.

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