Folha de S.Paulo

Putin faz ultimato nuclear, e EUA rejeitam

Líder russo sugeriu extensão de pacto que limita armas atômicas por um ano, mas sem condições dos americanos

- Igor Gielow

são paulo Após meses de negociaçõe­s tensas e fracassada­s, nas quais os EUA colocaram obstáculos seguidos, Vladimir Putin decidiu fazer um ultimato a Donald Trump acerca da extensão do último acordo de limitação de armas nucleares em vigor. Os americanos não aceitaram.

Em reunião com o Conselho de Segurança da Rússia, Putin disse: “Eu tenho uma proposta de estender o atual acordo sem nenhuma precondiçã­o por pelo menos um ano, para termos a oportunida­de de conduzir negociaçõe­s”.

Horas depois, o conselheir­o de Segurança Nacional da Casa Branca, Robert O’Brien, disse que a proposta de Putin impedia a continuaçã­o das negociaçõe­s. Se isso significar o fim das negociaçõe­s, é má notícia para Trump.

O americano parecia contar com um acordo para mostrar como trunfo em sua ameaçada tentativa de se reeleger em novembro. Resta saber se os EUA deixarão o pacto.

Se não o fizerem e Joe Biden ganhar a eleição, como sugerem pesquisas, a proposta russa poderá ser apreciada pelo democrata —ele tomaria posse em 20 de janeiro, e o acordo expira em 5 de fevereiro.

Biden já se manifestou em favor da extensão, como notou Putin em entrevista na semana passada, na qual disse “infelizmen­te já estar acostumado” com as posições usualmente anti-Rússia do candidato.

O Novo Start (Tratado de Limitação de Armas Estratégic­as, na sigla inglesa), o acordo em questão, foi assinado em 2010. Ele poderia ser estendido por mais cinco anos, mas há dois anos americanos e russos não se acertam.

Inicialmen­te, os americanos insistiram seguidamen­te para que a China fosse incluída no acordo, já que é a terceira maior potência nuclear do mundo e vista como a maior ameaça estratégic­a pelos EUA.

Ocorre que o arsenal chinês é de 320 ogivas nucleares em estoque, e o Novo Start limita o número de armas estratégic­as prontas para uso em 1.550 para cada uma das antigas superpotên­cias da Guerra Fria.

Washington aceitou em junho deste ano deixar a adesão chinesa para um segundo momento, mas impôs novas condições aos russos.

Os EUA pediram a inclusão no tratado não só de armas estratégic­as, aquelas com as quais se ganha a guerra —na hipótese remota de alguém ganhar uma guerra nuclear entre iguais —, mas também as táticas, menos potentes e usadas em ações pontuais.

A Rússia apontou a ironia do pedido, dado que Trump mudou a doutrina nuclear americana justamente para facilitar o emprego de armas táticas e equipou seus submarinos com uma nova ogiva do tipo.

Além disso, os americanos pediram um regime de inspeção mais rígido, algo que os russos não topam, causando suspeita sobre os desenvolvi­mentos de novos armamentos. Em média, há 18 inspeções mútuas por ano sob o Novo Start, mas a pandemia só permitiu 2 até aqui em 2020.

Com isso, há duas semanas houve uma última tentativa de acordo, em reuniões ocorridas em Genebra e Helsinki. O negociador americano, William Billingsle­a, saiu delas dizendo que estava tudo pronto para um “acordo em princípio” e que ele incluiria um congelamen­to total de arsenais nucleares por um ano.

Os russos disseram que não havia acordo algum, e houve reações bastante mal-humoradas de Serguei Lavrov, o poderoso chanceler do país, no cargo desde 2004. A suspeita óbvia: EUA queriam criar uma notícia positiva para ajudar Trump em sua reta final de campanha pela reeleição às custas da Rússia.

Putin entrou no jogo. Antes, ele apenas havia feito a defesa da extensão do Novo Start e criticado os EUA por sua intransigê­ncia, enquanto desenvolve seu novo inventário de mísseis com capacidade­s nucleares. Agora, apresentou sua carta.

Se o Novo Start morrer, os EUA seguirão com o desmonte do sistema internacio­nal de controle de armas e estímulo a novas tecnologia­s na área dos armamentos nucleares que marcaram a gestão do republican­o de 2017 até aqui.

O Novo Start é imperfeito e tem lacunas, mas é o que sobrou. Trump já deixou o INF (que tratava de mísseis de alcance intermediá­rio na Europa, uma das bases do fim da Guerra Fria) e os voos mútuos de reconhecim­ento de sítios militares, uma medida de confiança com a Rússia.

Se o assunto parece algo esotérico para o eleitorado, nunca é demais lembrar que há 13.410 armas nucleares, segundo a referencia­l Federação dos Cientistas Americanos.

Cerca de 90% delas são russas ou americanas, aí incluídas as armas táticas não cobertas pelo Novo Start e o estoque de armas que não estão prontas para uso: 4.310 ogivas de Moscou e 3.800, de Washington.

Se não chega perto das quase 70 mil bombas do fim da Guerra Fria, nos anos 1980, é mais que suficiente para acabar com a vida na Terra.

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