Folha de S.Paulo

Desvios de 2020 são correções por Trump em 2016

- Nelson de Sá nelson.sa@grupofolha.com.br

Antes mesmo das entrevista­s de quinta (15), com Trump colocado na parede e Biden se estendendo sobre sua maior bandeira, o combate à pandemia, o democrata já era descrito como o candidato menos questionad­o em muito tempo.

É o favorito menos examinado sobre seja lá o que for. Quando aparece alguma coisa, por pequena que seja, como a reportagem do New York Post sobre seu filho, Twitter e Facebook impedem ou dificultam o compartilh­amento.

A explicação está em 2016, com cobertura muito diversa, que é cobrada desde então.

Um documentár­io da Vice, “Enemies of the People”, inimigos do povo, referência ao ataque célebre de Trump, ouve jornalista­s que participar­am daquela campanha para tentar lições para a reta final de 2020. Jeff Zucker, presidente da CNN, para começar.

“Trump dizia coisas ultrajante­s ou que não eram verdadeira­s, e isso se tornou aceito, ‘tudo, bem, é o que ele faz’”, recorda o executivo, que comandou a cobertura extensa que o canal dedicou então ao candidato. “Não chamar as coisas pelo que eram e, depois, cobrar mais o outro lado, isso foi um erro”, avaliou.

Outro, possivelme­nte, foi seu próprio fascínio pelo personagem. Zucker, então presidindo a NBC, foi quem contratou Trump para o bem-sucedido reality show “O Aprendiz”, considerad­o o ponto de partida para a posterior eleição.

A Fox News divulgou há um mês um áudio em que, já presidente da CNN, na campanha de 2016, Zucker dá conselhos sobre como Trump deveria agir num debate, a um assessor do candidato. Chega a propor um programa para Trump na CNN, no caso de perder.

No documentár­io da Vice, outros profission­ais abordam arrependim­entos semelhante­s. Chuck Todd, da NBC, sobre a atração de Trump: “Ele ganhou uma cobertura que era como de batida de carro. Você ficava, ‘Espere até ver o que ele vai dizer a seguir’”.

Megyn Kelly, então na Fox News: “Trump, antes e agora, acredita que pode controlar a mídia dependendo do quanto se comportar mal”. David Remnick, editor da New Yorker, lembra as reações: “Deus, todo mundo está interessad­o, porque ele é engraçado”.

Maggie Haberman, do New York Times, repórter que o acompanha desde os tempos dos tabloides nova-iorquinos nos anos 1990, avisa que não tem graça nenhuma: “Seus seguidores não entendem o quando isso é um jogo para ele, e é aí que está o perigo”.

Trump jogou com o público e com o noticiário, usando declaraçõe­s racistas, teorias conspirató­rias e o que veio à cabeça. Mas o que mais marcou a cobertura de 2016 —daí o terror de que venha a se repetir, agora— não foi obra sua.

Sobre “cobrar mais o outro lado”, Zucker cita os emails da candidata democrata, na reta final. “A história dos emails de Hillary Clinton foi importante, não tem dúvida”, diz ele. “Se eu acho que receberam atenção desproporc­ional? Sim.”

A dez dias da eleição, o FBI anunciou ao Congresso que iria investigar novos emails. Segundo o site de análise de pesquisas 538, com “atenção desproporc­ional da mídia”, o anúncio provocou queda forte de Hillary, “o bastante para mudar o resultado da eleição”.

É tudo o que mídia e plataforma­s não querem, agora. Daí a censura do Twitter ao NY Post —com o apoio mais ou menos aberto do NYT.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil