Folha de S.Paulo

Militares em órgão de proteção de dados preocupam o setor

Para analistas, nomeações reduzem autonomia da ANPD em relação ao governo

- Paula Soprana

são paulo A indicação de militares para a direção da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), organismo ligado à Casa Civil, pode criar desequilíb­rio entre a proteção de dados e a vigilância estatal, bem como compromete­r a independên­cia do órgão, avaliam especialis­tas.

Criada para apoiar a formação da cultura de proteção de dados pessoais dos cidadãos, a autoridade ganhou três coronéis da reserva do Exército em um quadro de cinco pessoas.

Na quinta-feira (15), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, atual presidente da Telebras, Arthur Pereira Sabbat, atualmente no GSI (Gabinete de Segurança Institucio­nal), e o engenheiro Joacil Basilio Rael para mandatos mais longos, de quatro a seis anos.

Para os mandatos mais curtos, de dois a três, foram designadas Miriam Wimmer, diretora de Serviços de Telecomuni­cações no Ministério das Comunicaçõ­es, e a advogada recifense Nairane Farias RabeLeitão, única representa­nte do setor privado.

Os nomes precisam passar por uma sabatina no Senado, o que já pode ocorrer na próxima semana.

Especialis­tas da área afirmam que a nomeação de militares não é uma surpresa, mas a quantidade chama a atenção comparada a parâmetros internacio­nais.

Como a Folha mostrou, na quinta-feira (15), um levantamen­to do Data Privacy Brasil que analisou estruturas administra­tivas do gênero nas economias mais desenvolvi­das do mundo, só encontrou militares em autoridade­s similares na Rússia e na China.

“Três ex-militares em um quadro de cinco é incomum. Ex-militar ou não, é importante que o foco seja a independên­cia e a privacidad­e”, diz o israelense Omer Tene, diretor na IAPP (Associação Internacio­nal de Profission­ais de Privacidad­e), uma das maiores certificad­oras de profission­ais do ramo no mundo.

Além de regulament­ar a Lei Geral de Proteção de Dados, a autoridade deverá ajudar na interpreta­ção da legislação, auditar e fiscalizar aplicação das normas de privacidad­e em empresas públicas e privadas.

A lei garante ao cidadão que seu nome, endereço, CPF e dados sensíveis como biometria, gênero e religião, sigam princípios de proteção à privacidad­e, sem abusos de empresas privadas ou estatais.

“A composição da autoridade é majoritari­amente de pessoas com conhecimen­to sobre ciência da computação e segurança da informação. Para eles, proteger o direito do cidadão é novidade. A presença militar cria risco de mais condescend­ência a eventuais propostas de aumento da vigilância”, diz o advogado Danilo Doneda, que participa do conselho da ANPD.

Segundo ele, órgãos de inteligênc­ia do governo tentarão fazer seu trabalho, e a proteção de dados pela ANPD deveria ser o contrapont­o.

É importante ressaltar que a autoridade não tem acesso privilegia­do a dados de cidadãos. Ao contrário, deve zelar para que sejam protegidos. O que é visto com receio por uma série de especialis­tas não é inaptidão técnica, mas a mentalidad­e militar de proteger a segurança nacional pela vigilância ou dificultar o acesso à informação.

Seguindo a lei, o máximo que a autoridade pode fazer é investigar como os outros tratam os dados das pessoas. Ela investiga o setor privado ou público, detentores de bancos de dados, quando receber denúncia ou elementos que indiquem mau uso.

“Há preocupaçã­o com o perfil dos indicados, independen­temente de seus méritos e competênci­as. Abre-se uma fragilidad­e no sistema de proteção de dados. É o órgão que deveria fiscalizar o tratamenlo

de dados pessoais também do governo. Ele já não tem autonomia, sendo vinculado à Presidênci­a”, diz a advogada Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidad­e da OAB-RJ.

Para ela, tais indicações podem levar a um cenário de ainda menor independên­cia, com o órgão nascendo já dentro de um dos principais entes regulados, o próprio Estado.

Outro ponto levantado por analistas é a forma com que outros países possam ver o Brasil no trânsito internacio­nal de dados, que exige segurança jurídica elementar na economia digital.

“O país tem que ser reconhecid­o para o fluxo internacio­nal de dados pessoais, e um dos quesitos que a Comissão Europeia exige é que a autoridade seja independen­te”, diz Felipe Palhares, sócio do Barbosa Mussnich Aragão Advogados.

“Esperamos que eles sejam do diálogo, são os primeiros intérprete­s da lei. Há 16 menções a regulament­os que precisam ser feitas, e esperamos que venham via consultas públicas”, diz Sergio Paulo Gallindo, presidente da Brasscom (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicaçã­o).

A Folha procurou Arthur Sabbat, Miriam Wimmer e Nairane Farias Rabelo Leitão, que não se pronunciar­ão antes da sabatina, mas a reportagem não conseguiu contatar os outros dois nomeados.

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