Militares em órgão de proteção de dados preocupam o setor
Para analistas, nomeações reduzem autonomia da ANPD em relação ao governo
são paulo A indicação de militares para a direção da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), organismo ligado à Casa Civil, pode criar desequilíbrio entre a proteção de dados e a vigilância estatal, bem como comprometer a independência do órgão, avaliam especialistas.
Criada para apoiar a formação da cultura de proteção de dados pessoais dos cidadãos, a autoridade ganhou três coronéis da reserva do Exército em um quadro de cinco pessoas.
Na quinta-feira (15), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, atual presidente da Telebras, Arthur Pereira Sabbat, atualmente no GSI (Gabinete de Segurança Institucional), e o engenheiro Joacil Basilio Rael para mandatos mais longos, de quatro a seis anos.
Para os mandatos mais curtos, de dois a três, foram designadas Miriam Wimmer, diretora de Serviços de Telecomunicações no Ministério das Comunicações, e a advogada recifense Nairane Farias RabeLeitão, única representante do setor privado.
Os nomes precisam passar por uma sabatina no Senado, o que já pode ocorrer na próxima semana.
Especialistas da área afirmam que a nomeação de militares não é uma surpresa, mas a quantidade chama a atenção comparada a parâmetros internacionais.
Como a Folha mostrou, na quinta-feira (15), um levantamento do Data Privacy Brasil que analisou estruturas administrativas do gênero nas economias mais desenvolvidas do mundo, só encontrou militares em autoridades similares na Rússia e na China.
“Três ex-militares em um quadro de cinco é incomum. Ex-militar ou não, é importante que o foco seja a independência e a privacidade”, diz o israelense Omer Tene, diretor na IAPP (Associação Internacional de Profissionais de Privacidade), uma das maiores certificadoras de profissionais do ramo no mundo.
Além de regulamentar a Lei Geral de Proteção de Dados, a autoridade deverá ajudar na interpretação da legislação, auditar e fiscalizar aplicação das normas de privacidade em empresas públicas e privadas.
A lei garante ao cidadão que seu nome, endereço, CPF e dados sensíveis como biometria, gênero e religião, sigam princípios de proteção à privacidade, sem abusos de empresas privadas ou estatais.
“A composição da autoridade é majoritariamente de pessoas com conhecimento sobre ciência da computação e segurança da informação. Para eles, proteger o direito do cidadão é novidade. A presença militar cria risco de mais condescendência a eventuais propostas de aumento da vigilância”, diz o advogado Danilo Doneda, que participa do conselho da ANPD.
Segundo ele, órgãos de inteligência do governo tentarão fazer seu trabalho, e a proteção de dados pela ANPD deveria ser o contraponto.
É importante ressaltar que a autoridade não tem acesso privilegiado a dados de cidadãos. Ao contrário, deve zelar para que sejam protegidos. O que é visto com receio por uma série de especialistas não é inaptidão técnica, mas a mentalidade militar de proteger a segurança nacional pela vigilância ou dificultar o acesso à informação.
Seguindo a lei, o máximo que a autoridade pode fazer é investigar como os outros tratam os dados das pessoas. Ela investiga o setor privado ou público, detentores de bancos de dados, quando receber denúncia ou elementos que indiquem mau uso.
“Há preocupação com o perfil dos indicados, independentemente de seus méritos e competências. Abre-se uma fragilidade no sistema de proteção de dados. É o órgão que deveria fiscalizar o tratamenlo
de dados pessoais também do governo. Ele já não tem autonomia, sendo vinculado à Presidência”, diz a advogada Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ.
Para ela, tais indicações podem levar a um cenário de ainda menor independência, com o órgão nascendo já dentro de um dos principais entes regulados, o próprio Estado.
Outro ponto levantado por analistas é a forma com que outros países possam ver o Brasil no trânsito internacional de dados, que exige segurança jurídica elementar na economia digital.
“O país tem que ser reconhecido para o fluxo internacional de dados pessoais, e um dos quesitos que a Comissão Europeia exige é que a autoridade seja independente”, diz Felipe Palhares, sócio do Barbosa Mussnich Aragão Advogados.
“Esperamos que eles sejam do diálogo, são os primeiros intérpretes da lei. Há 16 menções a regulamentos que precisam ser feitas, e esperamos que venham via consultas públicas”, diz Sergio Paulo Gallindo, presidente da Brasscom (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação).
A Folha procurou Arthur Sabbat, Miriam Wimmer e Nairane Farias Rabelo Leitão, que não se pronunciarão antes da sabatina, mas a reportagem não conseguiu contatar os outros dois nomeados.