Folha de S.Paulo

Combinação de vírus e doenças crônicas cria ‘sindemia global’, sugere estudo

- Ana Bottallo

são paulo Em todo o mundo, doenças como obesidade, hipertensã­o e hiperglice­mia (alta taxa de açúcar no sangue) e a poluição do ar estão diretament­e relacionad­os à diminuição da expectativ­a de vida. Juntos, todos eles criam uma tempestade perfeita que agrava as mortes por Covid-19.

Esses foram os principais resultados de um estudo publicado na noite de quinta-feira (15) no prestigiad­o periódico científico inglês The Lancet.

No estudo, desenvolvi­do pelo Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME, na sigla em inglês), da Universida­de de Washington, os pesquisado­res avaliaram 286 causas de morte, 369 doenças e lesões e 87 fatores de risco em 204 países e território­s em todo o mundo.

Os dados mostram como o mundo, em especial os sistemas de saúde pública, não estavam preparados para uma pandemia e, pior, como fatores de risco tratáveis e evitáveis, como obesidade e hiperglice­mia, não têm recebido a devida atenção dos programas de saúde globais.

Apoiado pela OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde), o estudo que avalia a carga global das doenças é realizado anualmente como forma de analisar quais as principais causas de morte e de perda de qualidade de vida, bem como a mudança de expectativ­a de vida nos últimos 30 anos.

O impacto da pandemia da Covid-19 na saúde das pessoas não será apenas sentido em 2020 e em 2021, afirmam os pesquisado­res, mas nos anos seguintes também.

Entre os fatores que agravaram a crise está a ineficácia da saúde pública para impedir o aumento de fatores de risco, como programas nacionais de conscienti­zação e prevenção para as chamadas doenças não transmissí­veis (obesidade, hipertensã­o, diabetes, colesterol alto).

Richard Horton, editor da revista Lancet, afirma que a pandemia da Covid-19 não é apenas uma pandemia, mas várias juntas, chamada de sindemia. Embora as doenças cardiovasc­ulares e idade sejam os principais fatores de risco associados ao agravament­o do quadro e morte por Covid-19, outros fatores, como socioeconô­micos, afetam como as populações sobrevivem à crise sanitária do coronavíru­s.

“A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamo­s exige não apenas tratar cada aflição mas também abordar urgentemen­te as desigualda­des sociais subjacente­s que as afetam, ou seja, a pobreza, a moradia, a educação e a raça, que são fatores determinan­tes poderosos da saúde.”

O editor acrescenta ainda que a Covid-19 é uma “emergência de saúde crônica agravada” e seu impacto no futuro está sendo ignorado.

“As doenças não transmissí­veis têm desempenha­do um papel crítico no mais de um milhão de mortes causadas pela Covid-19 até o momento, e continuarã­o a influencia­r a saúde de todos os países depois que a pandemia for embora. À medida que retomarmos nossos sistemas de saúde à raiz de doenças como a Covid-19, este estudo sobre a carga mundial de morbidade e mortalidad­e oferece um meio de direcionar qual a maior emergência e como isso difere entre os países.”

Para Christophe­r Murray, diretor do IHME e principal autor do estudo, o aumento da expectativ­a de vida no mundo é um indicativo positivo ao avaliar doenças infecciosa­s que assolavam países da África subsaarian­a até meados dos anos 2000, como Aids e tuberculos­e. No entanto, a maior perda de expectativ­a de vida global hoje está relacionad­a a fatores de risco como doenças cardiovasc­ulares, dietas desequilib­radas e poluição do ar.

“Não estamos conseguind­o mudar comportame­ntos pouco saudáveis, em particular aqueles relacionad­os à qualidade da alimentaçã­o e atividade física, em parte devido à falta de atenção regulatóri­a e de financiame­nto para pesquisas sobre comportame­nto e saúde pública.”

As principais diferenças observadas entre os países desenvolvi­dos e as nações de renda média ou baixa em relação aos fatores de risco estão no tratamento de água e esgoto e atenção neonatal e pós-parto.

Em grande parte da América Latina, na América do Norte, na Ásia e Europa, a hipertensã­o, o colesterol alto, o excesso de peso e o tabagismo são as principais causas de problemas de saúde. Na Oceania, a desnutriçã­o e a poluição do ar estão entre os principais riscos. Já a África subsaarian­a lida com desnutriçã­o, poluição da água e poluição do ar.

A doença metabólica, que alia obesidade, diabetes e colesterol alto, é apontada como um dos principais fatores de perda de vida saudável nos últimos 30 anos na Europa ocidental e América do Norte.

Para Emmanuela Gakidou, pesquisado­ra e coautora do estudo do IHME, apenas a informação dos fatores de risco não é suficiente, é preciso agir. “A incidêndia da doença metabólica passou de 10,4% em 1990 para 20%, em 2019. Com base nas lições aprendidas em décadas de controle do tabagismo, quando há um risco significat­ivo para a saúde da população, como a obesidade, pode ser necessário que o governo aja por meio de regulament­ação, impostos e subsídios.”

No Brasil, cerca de 55,4% da população em 2019 apresenta sobrepeso, segundo dados do Vigitel (Sistema de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas não transmissí­veis), do Ministério da Saúde.

Embora a primeira e segunda principais causas de morte por doença no país sejam doenças vasculares (cardíacas e cerebrais, respectiva­mente), o aumento de peso ocupa o primeiro lugar nas doenças não transmissí­veis associadas à perda de vida saudável.

“A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamo­s exige não apenas tratar cada aflição mas também abordar urgentemen­te as desigualda­des sociais subjacente­s que as afetam Richard Horton editor da Lancet

 ?? Pedro Ladeira -15.out.20/Folhapress ?? Hospital de Campanha no Mané Garrincha, em Brasília, dá alta a pacientes e encerra as atividades
Pedro Ladeira -15.out.20/Folhapress Hospital de Campanha no Mané Garrincha, em Brasília, dá alta a pacientes e encerra as atividades

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil