Folha de S.Paulo

A opção pela liberdade

Carol Solberg é exemplo da concepção relativa da liberdade no esporte

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Ainda que praticado por seres humanos, há momentos em que o esporte parece se constituir como um fenômeno único, regido por uma moralidade própria. Suas regras o fazem ser considerad­o uma linguagem universal, passível de ser praticado por mulheres e homens de todo o planeta, independen­temente de cultura ou credo religioso.

Em tese, isso parece maravilhos­o. Uma atividade que remete à agonística, organizada por uma instituiçã­o autônoma, capaz de conter em si mesma a magia do gesto e a transcendê­ncia de pessoas fora de série. Entretanto, como tudo que é da ordem do humano, o esporte pode ser interpreta­do e manipulado por quem detém o poder de sua organizaçã­o. E não sejamos ingênuos: isso acontece com uma frequência mais que indesejada.

Afinal, mesmo existindo com leis próprias, as instituiçõ­es esportivas estão sujeitas aos movimentos do momento histórico e do lugar nos quais elas estão situadas. Tudo o que acontece no esporte é demasiadam­ente humano.

Nesta semana, Carol Solberg foi julgada e punida com advertênci­a por ter bradado “Fora, Bolsonaro” durante uma entrevista ao final de um torneio de vôlei de praia. Essa punição a impede de se pronunciar a partir daquele momento. Amordaçada pela justiça desportiva, transforma­da em uma jogadora desprovida de voz, porém não de intenção, Carol é um exemplo ideal da concepção relativa da liberdade dentro do esporte.

Livre para usar sua habilidade motora em favor da equipe em que atua, e do país que representa, não desfruta da mesma autonomia para exercer sua potência intelectua­l como mulher e cidadã.

Cindida de seu desejo, é impedida de manifestar o que pensa e sente. Fica nítida a intensão dos que julgam: é fundamenta­l esvaziar a potência da voz dessa atleta, que desfoca a atenção da competição, um de seus papéis sociais, e remete à sua condição de cidadã, que não deixa de entrar em quadra no momento de seu exercício profission­al.

Ainda que 2 dos 5 auditores tenham sido contrários à punição, parece mesmo que a justiça desportiva interpreta o que é o esporte e a liberdade de expressão sem considerar os princípios básicos que regem o olimpismo.

Nunca é demais lembrar que o princípio fundamenta­l nº 2 da Carta Olímpica entende o olimpismo como uma filosofia de vida que exalta e combina em equilíbrio as qualidades do corpo, do espírito e da mente, combinando esporte com cultura e educação. Quero com isso afirmar a impossibil­idade de ter uma atleta hábil na quadra, porém desprovida de pensamento e voz.

O caso de Carol remete à história do filósofo Spinoza, que aos 24 anos foi julgado e banido da comunidade judaica de Amsterdã. Sua heresia foi pensar e falar em defesa da liberdade de pensamento e de expressão. Anos mais tarde, foi também julgado e condenado pelo sínodo calvinista por sua obra “Tratado TeológicoP­olítico”. Afirmava o filósofo que os afetos originados das paixões alegres têm potência transforma­dora.

Carol celebrava a medalha de bronze no momento de sua manifestaç­ão. Virtuosa, provava a integração de um corpo habilidoso com uma mente também ágil e habilidosa. Afirmava assim tanto um princípio olímpico como humano.

Porém, como na Amsterdã do século 17, um tribunal a julgou culpada e a fez calar. Espero que sua heresia, assim como a de Spinoza, prove que a liberdade é a proximidad­e plena de si consigo mesma. E que o silêncio imposto não cale sua capacidade de pensar para se expressar tão logo sua liberdade seja restituída.

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