Folha de S.Paulo

Reedição de livro de Nina Horta é um prato suculento de histórias

‘Não É Sopa’ reúne uma série de crônicas com assuntos variados, que incluem gastronomi­a, literatura e cinema

- Josimar Melo

Não É Sopa *****

Autor: Nina Horta. Ed.: Companhia das Letras. R$ 64,90 (376 págs.)

“Cuidado, não é um livro de receitas. É de pessoas, lugares, manias, modas, costumes. Com algumas receitas representa­tivas tiradas de vários lugares.”

Essa advertênci­a da autora é uma das primeiras anotações acrescenta­das à nova edição do livro “Não É Sopa”, uma reunião de crônicas (e também várias receitas) de Nina Horta —cozinheira, empresária, pesquisado­ra, escritora e por longo tempo, até o fim da vida, colunista deste jornal.

Ela morreu no ano passado, aos 80 anos, mas antes disso, já hospitaliz­ada, ditou à filha Dulce os comentário­s que viriam a atualizar a reedição deste seu livro lançado em 1995. Nele foi mantido o texto original, e as anotações foram adicionada­s nas margens ou rodapés das páginas, numa tipografia de texto manuscrito.

(Leitora compulsiva, dona de uma vasta biblioteca que incluía muita literatura, não só comida, Nina Horta era assim —anotava suas observaçõe­s nos livros dos outros, por que não o faria no seu?)

“Não É Sopa” tem uma grande atualidade, mesmo passado um quarto de século de seu lançamento, e os pequenos ajustes anexados servem para realçar muito do que mudou na superfície, mas nem tanto na essência.

O texto da autora tem um quê feminino (como certas comidas têm, mas ao o afirmar —sobre literatura ou comida— sei que compro uma briga que não vale esgrimir aqui). E eis que ela escreve longamente sobre autores de sua predileção e vê que quase todos são maravilhos­as mulheres (a seção de “Escritores e Livros” é a mais longa do livro).

São figuras como Elizabeth David (“sempre, sempre, a minha musa”), Lillian Hellman (no caso, com o parceiro de cama, mesa e letras Peter Feibleman), Alice B. Toklas. Quase sempre de língua inglesa.

“Tenho de confessar uma pequena implicânci­a em relação à culinária escrita em língua francesa. A implicânci­a é com a língua, com a retórica, com o estilo um pouco pomposo e esnobe. Mas é, também, uma certa inveja dos fígados gordurosos, dos frangos de Bresse, da infinidade de cogumelos, sem contar ‘les fonds’, ‘les garnitures’, ‘les truffes’, ‘les pigeonneau­x’. Para alguém que quer aprender a cozinhar, essa leitura pode trazer o desânimo imediato. É que ‘faire l’amour’ [‘fazer amor’ em português] e ‘faire la cuisine’ [‘cozinhar’] são sinônimos para os franceses.”

Solução: para render a justa homenagem à gastronomi­a gaulesa, ela elenca autoras de livros culinários que populariza­ram as delícias da França, só que em inglês —Julia Child, Paula Wolfert, Anne Willan, Patricia Wells.

Mas ela não comenta só os ligados à gastronomi­a. Embora sempre buscando suas conexões com a comida, sobrará também para Ludwig Wittgenste­in, Virginia Woolf, Gertrude Stein, Evelyn Waugh,

Patrícia Melo, entre outros.

Em “Não É Sopa”, as crônicas —acompanhad­as de 235 receitas— são agrupadas por temas. Além dos escritores e livros, há por exemplo “Opiniões” (que inclui seu texto emocionant­e “Comida de Alma”, tão marcante quando foi lançado —e também “Comida Perversa”); “Reminiscên­cias” (lembranças dos sabores e hábitos desde os anos 1940); “Filmes” (que inclui sua perspicaz observação da relação entre Hitchcock e as galinhas); “On the Road” e outros.

Tudo é salpicado pela erudição leve e despretens­iosa e pelo bom humor que ela esparrama sobre tudo, inclusive nas ironias sobre si mesma —como se vê neste comentário: “Por deformação profission­al, de todo livro que lia, gravava as comidas”. “Deu nisso. Roubei estilo, palavras, receitas, anedotas. A maioria é de livros estrangeir­os não traduzidos na época.”

A sabedoria sem ostentação que Nina Horta exibe pelas crônicas é algo que ela fazia na vida, comendo um quitute mineiro (de sua terra), uma complicada iguaria francesa, ou sorvendo uma talagada de uísque escocês, que ela apreciava especialme­nte quando a convidavam para “tomar um chazinho” (“por que acham que eu só tenho que tomar chazinho?”, dizia sempre).

Já escrevi algo parecido antes sobre Nina Horta, mas repito que reler seus livros é como provar de novo um prato delicioso —aquece pelo reencontro, a lembrança do que já conhecemos, e pelas novas surpresas escondidas em camadas de sabor e inteligênc­ia.

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