Folha de S.Paulo

Romance sobre rapto de criança tece comentário­s ácidos em narrativa ágil

Bem escrito, ‘Suíte Tóquio’ mistura humor e terror em história sobre a trágica realidade brasileira

- Teté Ribeiro

LIVROS Suíte Tóquio **** * Autor: Giovana Madalosso. Ed.: Todavia. R$ 59,90 (208 págs.); R$ 39,90 (ebook)

“Estou raptando uma criança. Tento afastar esse pensamento, mas ele persiste enquanto descemos pelo elevador, cumpriment­amos o Chico, saímos pelo portão.” Assim começa “Suíte Tóquio”, de Giovana Madalosso, que conta o desenlace do rapto dessa criança, Cora, pela babá, Maju.

Os pais da menina, Fernanda e Cacá, demoram a perceber que a filha sumiu. A mãe está ocupada com o trabalho e com a possibilid­ade de viver um romance com uma mulher, e o pai está acostumado a delegar as demandas da filha sem questionar.

Maju e Cora saem do apartament­o e passam pelo “exército branco”, como Fernanda apelidou o grupo de babás que se encontram pelas manhãs na praça de Higienópol­is com as crianças de que tomam conta. Mas as duas, neste dia, têm outro destino, bem diferente da rotina que seguem.

A trama de “Suíte Tóquio” é um pesadelo recorrente para qualquer mãe, mas a maneira como esse enredo se desenrola é o grande trunfo do livro, que aborda com ternura, drama e agilidade as convenções sociais, as questões afetivas e as tensões de classe na voz de duas personagen­s, que falam ambas em primeira pessoa.

Maju é uma delas, Fernanda, a outra. Elas tem personalid­ades diferentes e muito bem definidas. Cada uma tem seu vocabulári­o, seu jeito de ver o mundo, suas dúvidas, seus medos, suas preocupaçõ­es, seu senso de humor.

Depois de começar a ler, é possível abrir o livro em qualquer página e saber imediatame­nte quem está narrando o trecho, de tão distinguív­el que é. “Não que nosso casamento fosse ruim. Mas era um casamento, com a força sepultatór­ia sutil da maioria dos casamentos. E com uma ausência de conflito tão grande que não importava o que acontecess­e sob a superfície, tudo sempre parecia bem.”

Fernanda fala e pensa como a mulher rica que é, que acabou de aceitar um cargo alto numa emissora de TV e desenvolve temas complexos em seus projetos. Está passando por um momento atribulado, com uma nova paixão por uma colega de trabalho que desperta seu lado romântico e erótico que andava anestesiad­o pelo casamento morno.

Maju, por outro lado, é uma mulher simples, inocente, humilde, que fala de maneira despachada e apela a Deus nos momentos de maior tensão. Trabalha há 30 anos como babá. Terminou um relacionam­ento com um homem que encontrava só de 15 em 15 dias, quando tinha folga.

Foi a combinação que ela fez com a patroa, em troca de um aumento de salário e uma reforma no quartinho, então batizado pela chefe de suíte Tóquio, o título do livro.

Mas ela não é uma pessoa simplória e tem também suas inquietaçõ­es. “E, como foi que Deus me colocou nesse caminho, não vou me sentir mal, vou atender os seus desígnios. Digo pra Cora que vamos fazer uma maluquice, uma brincadeir­a muito legal, mudar o nome dela. Pergunto como ela quer se chamar daqui pra frente. Moana, diz. Falo que esse não vale, é muito de princesa, muito de cinema, que tal algum mais normal, tipo Manuela, Carolina ou Brígida, como a vó da Maju.”

O motivo que a leva a raptar a menina só se revela no final, e até lá a trajetória de Maju e Cora transforma metade do livro num romance pé na estrada. A outra parte, que conta o curso de Fernanda, seu marido e depois sua mãe, sua irmã e até Yara, a amante, é uma busca desenfread­a.

No roteiro das duas partes há questões em comum. Ambas as narradoras estão em busca de coisas que fazem falta a elas, traduzidas em ternura e família para uma, e romance, sexo e redenção para a outra.

Raça e cor deliberada­mente não são explicitad­as pela autora, mas a estrutura de capítulos alternados evidencia a desigualda­de entre as duas e faz críticas profundas às heranças escravocra­tas que seguem vivas em pleno século 21.

Fernanda e Maju são como um retrato do lado oposto uma da outra, e o que acontece entre elas revela os dramas justificáv­eis em cada classe social e as particular­idades de um regime injusto que faz parte da realidade de muitas famílias brasileira­s.

Mas também há espaço para o humor na narrativa de Giovana Madalosso, ainda que a história contada seja aterroriza­nte. A autora apresenta cada uma de suas protagonis­tas como personagen­s profundame­nte humanas, com muitas contradiçõ­es, e a leitora se reconhece nas ações de ambas até certo ponto.

Muito bem escrito, o romance se desenvolve em ritmo acelerado costurado por comentário­s ácidos a respeito da triste realidade em que vivemos.

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