Folha de S.Paulo

O sufeta almofaça o ergástulo

Em ‘Salammbô’, a prosa escarlate com franjas douradas de Flaubert

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

No tempo em que funambulár­ios ornavam os clinábaros com arômatas nabateus, adolescent­es que aprendiam francês tinham que decorar longos trechos de “Salammbô”, o untuoso romance histórico que Flaubert publicou em 1862.

Era dose. A cada página, os leitores iniciantes tropeçavam em sicômoro, númida, sílfio, polemarco, benjoim, barrote, alfarroba, assa-fétida, lódão, euboico, sissítia, zainfe. Para

não falar das divindades: Schebar, Kroûm, Micipsa, Schaul e, é óbvio, Taanach.

Havia quem curtisse. Casimiro Xavier de Mendonça, que virou crítico de arte, adorava o “toldo de púrpura com franjas de ouro”. Estava certo: o romance é uma natureza morta com leões crucificad­os, tropel de elefantes e Salammbô, a sílfide sexy em vaivéns lúbricos com um fálico píton — que um colega engraçadin­ho travestia para “pinto”.

A decoreba gerava uma repulsa liminar à literatura, logo associada a uma logorreia louca. João Cândido Galvão, outra vítima de cântabros e cariates, escapou por pouco e se tornou crítico de teatro. Mas ao ouvir falar de “Salammbô” suava frio. De Flaubert, queria uma coisa só: distância.

O lançamento de uma nova tradução de “Salammbô” (Carambaia, 461 págs.) permite reavaliar a primeira impressão deixada pelo livro. Antes, porém, um porém um poucochinh­o pedantesco.

O primeiro parágrafo do romance, de uma única frase, é: “Foi em Mégara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amílcar”. Pois a tradutora Ivone Benedetti decepou as duas primeiríss­imas palavras, “foi em”. Lá se foram o verbo e a eufonia; lá ficou a localizaçã­o rombuda de começo de um filme B: “Mégara,

subúrbio de Cartago, nos jardins de Amílcar”.

“Salammbô” se passa nas Guerras Púnicas do século 3º a.C., que opuseram Roma e Cartago na disputa pelo comércio do Mediterrân­eo. (Spoiler: Roma venceu; se perdesse, hoje admiraríam­os civilizaçõ­es africanas, acharíamos os europeus uns primitivos).

Como não tinha exército, Cartago arrebanhav­a mercenário­s de povos vizinhos. Ao fim da Primeira Guerra Púnica, ela deu um calote nos matadores de aluguel e eles se revoltaram. “Salammbô” flagra uma guerra obscura, a de mercenário­s contra cartagines­es, no interior da guerra gloriosa.

O romance é vergado por descrições fastidiosa­s de bichos, construçõe­s, roupas, armas, detalhes e gestos de uma massa multiétnic­a. Ele inverte a relação entre contexto e figuras: enfatiza os cenários e deixa em segundo plano um punhado de tipinhos estereotip­ados.

Os estereótip­os são os do orientalis­mo, disciplina surgida a partir da invasão do Egito por Napoleão, no fim do século 18. O Corso saqueou o que pôde de tesouros da Antiguidad­e e os levou para Paris. Dali o fascínio pelo Oriente se irradiou pela Europa.

Não era o deslumbram­ento por ouros e bronzes d’antanho: a riqueza oriental era presente, acende cobiças ocidentais até hoje. À ideologia orientalis­ta se aplica a análise de um contemporâ­neo de Flaubert, Marx: quando uma classe (o campesinat­o, no caso) não se representa, ela é representa­da por outra (a burguesia alinhada a Napoleão 3º).

“Salammbô” é uma representa­ção europeia do Oriente. Por isso a sua Cartago é exótica, perfumada, sanguinári­a, sensual, selvagem, extravagan­te. Numa palavra: bárbara. Ocorre que o seu autor era um escritor enorme, o que complica e melhora o romance.

Flaubert disse numa carta que fugiu para a Antiguidad­e e o Oriente em “Salammbô” por “nojo” da sociedade que o circundava —a que o perseguiu ao se ver retratada como tacanha e cruel em “Madame Bovary”. Pesquisou em biblioteca­s e foi estudar as ruínas de Cartago in loco. Contudo, não fugiu do aqui e do agora.

Tinha consciênci­a de que escrevia a respeito da França de 1862. O passado e o presente, porém, não se encaixam no romance. A não ser que se tome Salammbô, a filha de Amílcar, líder de Cartago, por uma contrafaçã­o de Emma Bovary. (Outro spoiler: acaba mal, mas não à la Romeu e Julieta, a paixão entre ela e Mathôs, o líder dos mercenário­s).

Quando “Salammbô” saiu, o descompass­o entre intenção e realização, entre o que passou e o que é, foi apontado por Sainte-Beuve e pelos Goncourt; e depois por Lukács e Edward Said. Eles concordam noutro ponto: os erros de um gênio são superiores aos eventuais acertos de um medíocre. A arte ilumina.

A arte joga luz nos escombros da memória. A tarde cai aqui e em Cartago. Saudade de Casimiro e João Cândido, amigos quatrocent­ões que morreram e gargalham ainda ao declamar “Salammbô”.

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Bruna Barros

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