Folha de S.Paulo

A grande trapaça das padarias

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Cacetinho é seu nome no Rio Grande do Sul. Em Sergipe, chamam-no de pão jacó. O cearense pede pão carioquinh­a, o paraense come pão careca, o capixaba e o mineiro compram pão de sal. Em São Paulo, ele é simplesmen­te pãozinho.

Circula nas redes sociais um mapa do Brasil dividido de acordo com a denominaçã­o regional do pão francês. Se é preciso na cartografi­a, não sei, mas diverte.

O que não é divertido: esses pães, apesar dos nomes diferentes, são todos iguais. Porque todos são feitos com fórmulas prontas vendidas pelos moinhos e por conglomera­dos transnacio­nais. Como os bolos de caixinha do supermerca­do.

Nesta sexta (16) foi o Dia Mundial da Alimentaçã­o, que celebra a fundação da FAO, braço das Nações Unidas responsáve­l por programas de combate à fome. O pão, mais básico dos alimentos, pegou carona na homenagem. Assim, 16 de outubro também é o Dia Mundial do Pão.

Minha caixa de email foi inundada com lembretes da data, de remetentes ligados à indústria da panificaçã­o. Setor que não se limita aos pães industriai­s prontos; ele atua sem alarde, longe da atenção do consumidor, no fornecimen­to de insumos para padarias de qualquer tamanho.

Até o fim do século passado, a qualidade média dos pães era lamentável no Brasil, é forçoso admitir. No lado positivo, cada padeiro tinha sua receita. Um cacetinho não era um careca, ainda que a diferença fosse sutil.

Mataram um problema com outro problema maior. Vieram a profission­alização e as prémistura­s que aniquilara­m a diversidad­e regional. Todas as padocas as usam —exceção feita aos padeiros artesanais, que recorrem ao adjetivo para anunciar que preparam a própria massa.

Entro na padaria do meu bairro para checar as opções. Multigrãos, australian­o, semi-italiano... “Ma che cazzo” é um semi-italiano? Um pão da Mooca, que fala com sotaque meio calabrês?

Errado: esse é o nome que vem na caixa da mistura. No meu bairro, em Sorocaba, em João Pessoa. O fenômeno da massa pronta é global. Não escapam dele nem as baguetes que viajam sob o sovaco dos parisiense­s.

Pão, na sua forma mais simples, é farinha e água. A maioria leva fermento e sal. Pode ter também açúcar, ovos, manteiga, banha, azeite, leite... tudo isso faz parte do receituári­o clássico.

As misturas vêm com “melhorador­es” de farinha e um rol de ingredient­es que você só viu antes na apostila de química do cursinho. Isso não é bom, mas tem coisa pior na utilização desses preparados.

“Os processos tradiciona­is requerem um cuidado excessivo com a massa, (...) um maior conhecimen­to técnico do padeiro”, diz um texto de 2017, sem assinatura, da revista “IPC”, publicação para empresário­s da panificaçã­o.

Em outras palavras: não fossem as misturas, as padarias precisaria­m contratar padeiros que soubessem fazer pão. Ou investir em treinament­o. Isso soa um tanto revolucion­ário, quase subversivo.

Você frequentar­ia uma cantina que usa molho de tomate enlatado? Pagaria para comer miojo num restaurant­e japonês? Esse tipo de ardil se chama trapaça.

Retiro aqui o que disse na coluna de 27 de junho, “Faça amor, não faça pão em casa”. Faça os dois.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil