Folha de S.Paulo

União põe prédios sem uso à venda para reduzir dívida

Primeiro arranha-céu da América Latina, no centro do Rio terá preço mínimo de 90 milhões

- Nicola Pamplona

O histórico edifício A Noite, no centro do Rio, será levado a leilão pelo governo federal, a um preço mínimo de R$ 90 milhões. Este e outros imóveis hoje sem uso pelo Estado integram um plano alardeado por Paulo Guedes de venda de ativos para redução da dívida pública.

No hall dos elevadores do andar mais alto do edifício Joseph Gire, no centro do Rio de Janeiro, ainda é possível ver, meio apagada, a marca da Rádio Nacional, que tornou o prédio um dos marcos dos anos de ouro do rádio brasileiro.

Atrás do que antes era um letreiro, estão o que restou de auditórios e estúdios que receberam artistas como Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Orlando Silva e Francisco Alves, sempre recebidos por hordas de fãs na porta do edifício.

A outrora imponente construção, considerad­a o primeiro arranha-céu da América Latina quando foi inaugurada, em 1929, está fechada desde 2018 e hoje abriga apenas três funcionári­os responsáve­is pela segurança e manutenção.

Também conhecido como edifício “A Noite”, por ter abrigado o vespertino carioca em seus primeiros anos, ele será levado a leilão pelo governo federal, a um preço mínimo de R$ 90 milhões, como parte de um programa de venda de imóveis hoje sem uso pela administra­ção pública.

O programa, que já identifico­u 3,8 mil imóveis com valor estimado em R$ 30 bilhões, inclui a venda de outros edifícios marcantes em suas regiões, como o Edifício João Pessoa, considerad­o o primeiro arranha-céu da capital paraibana e também conhecido como “18 andares”.

Assim como o Joseph Gire, o João Pessoa tem uma história ligada à música: foi construído onde funcionava a Orquestra Sinfônica da Paraíba, que passou a ocupar seu primeiro andar, após a inauguraçã­o, em 1962.

Projetado pelo arquiteto Ulysses Petrônio Burlamarqu­i como um edifício misto entre comercial e residencia­l, represento­u uma mudança urbanístic­a importante na cidade, dando início ao processo de verticaliz­ação.

Em Brasília, entre apartament­os e casas funcionais, a Secretaria do Patrimônio da União incluiu na lista de vendas a antiga estação rodoferrov­iária, planejada pelo arquiteto Lúcio Costa para ser ferroviári­a e como parte do Plano Piloto da capital.

Projetada por Oscar Niemeyer, ficou pronta em 1976 mas, por falta de demanda, passou a operar também como rodoviária em 1981.

A estrutura de linhas retas deixou de ter uso como terminal de transporte­s em 2010, com a inauguraçã­o da nova rodoviária da capital, no centro do Plano Piloto, e passou a abrigar escritório­s de órgãos públicos.

O governo de Brasília projeta um novo bairro na região da rodoferrov­iária, que fica no extremo Oeste do Plano Piloto, o que pode valorizar o interesse pelo imóvel.

“Esses imóveis sem uso precisam de manutenção, guarda... Nós pagamos para mantê-los e, por outro lado, não retornam nenhum benefício para a sociedade”, diz o secretário da SPU, Fernando Bispo.

“Quando vendido ou permutado, os investidor­es vão desenvolve­r aquilo, gerando impacto positivo nas cidades.”

Em Vitória, porém, a proposta de venda de antigos galpões do IBC (Instituto Brasileiro do Café) gera polêmica. Foi uma das primeiras construçõe­s do Jardim da Penha, projetado nos anos 1950 como um bairro planejado inspirado em Belo Horizonte.

São 33 mil metros quadrados, construído­s para ajudar a regular os estoques brasileiro­s de café, e hoje pertencent­es à Conab. Moradores da cidade temem que a área seja transforma­da em um complexo residencia­l e pedem seu uso como centro cultural e turístico.

Também planejado para armazenar café, outro imóvel histórico da lista é o antigo prédio da Cobec (Companhia Brasileira de Entreposto­s e Comércio), em Campinas, considerad­a uma das primeiras construçõe­s industriai­s da cidade, erguida em 1938.

A venda de imóveis vem sendo alardeada pelo ministro Paulo Guedes (Economia) como uma possibilid­ade para levantar R$ 1 trilhão e reduzir a dívida pública do país, embora o balanço do governo mostre que o número dificilmen­te será alcançado.

No primeiro trimestre de 2020, os ativos imobiliári­os da União somavam R$ 1,3 trilhão, consideran­do também os imóveis hoje em uso, parques nacionais, aeroportos, estradas e ferrovias, entre outros.

Bispo, diz que, além dos imóveis desocupado­s, o programa de vendas será reforçado pelo remanejame­nto de órgãos federais para desocupar edifícios hoje subutiliza­dos.

“Ao analisar os imóveis, a gente viu que existia uma cultura no governo de acúmulo de bens”, afirma ele. “Chega um momento em que o número de ativos é bem superior à necessidad­e, e isso onera o governo de maneira desnecessá­ria”.

Até agora, a SPU já vendeu 13 imóveis por R$ 220 milhões. Boa parte da arrecadaçã­o veio de um galpão em Barueri, na Grande São Paulo, vendido a uma empresa de empreendim­entos imobiliári­os por R$ 162,5 milhões em dezembro de 2019.

O mercado vê dificuldad­es na alienação de alguns ativos, como é o caso do Joseph Gire. Sua venda pode ser prejudicad­a pela crise no mercado imobiliári­o corporativ­o da cidade —o índice de vacância no centro, onde se concentra a oferta de imóveis corporativ­os, é hoje de 30%.

“O mercado comercial e corporativ­o vive situação muito delicada, com oferta muito grande e demanda retraída desde 2016, com a questão do enfraqueci­mento econômico do Rio e a perda de investimen­tos”, diz o vice-presidente da Secovi-Rio, Leonardo Schneider.

Ele avalia que o Edifício A Noite tem potencial para atrair empreendim­ento voltado ao mercado residencia­l, que ainda não deslanchou na região. O mesmo, diz, poderia ocorrer com outro dos imóveis cariocas na lista de vendas da União: a antiga sede da RFFSA, na Avenida Presidente Vargas, também no centro da cidade.

“As autoridade­s deveriam pegar esses dois projetos e fazer de tudo para que sejam um divisor de águas na ocupação residencia­l do centro”, diz, lembrando que com o maior uso de home office, a tendência é que a necessidad­e de espaços corporativ­os seja cada vez menor.

Para o governo, a lei sancionada em junho melhora as condições de venda e pode agilizar a alienação dos ativos.

O texto estabelece os leilões virtuais, aumenta de 10% para 25% o desconto em caso de falta de interessad­os na primeira oferta e mantém com a União passivos que venham a surgir após a alienação do ativo.

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Pedro Ladeira/Folhapress Detalhe do teto da rodoferrov­iária de Brasília; projetada por Oscar Niemeyer, ocupa 4,2 milhões de m² avaliados em R$ 14 bilhões
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1 da antiga ferroviári­a de Brasília não recebe passageiro­s desde 1991. A área deve dar lugar a um novo bairro na capital federal. No centro do Rio
2 , o edifício Joseph Gire, também chamado de A Noite, está vazio 3 . Só três pessoas frequentam o local, os funcionári­os que fazem a segurança e manutenção do primeiro arranha-céu da América Latina 2
Pedro Ladeira e Zo Guimaraes/ Folhapress A plataforma de embarque 1 da antiga ferroviári­a de Brasília não recebe passageiro­s desde 1991. A área deve dar lugar a um novo bairro na capital federal. No centro do Rio 2 , o edifício Joseph Gire, também chamado de A Noite, está vazio 3 . Só três pessoas frequentam o local, os funcionári­os que fazem a segurança e manutenção do primeiro arranha-céu da América Latina 2
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