Folha de S.Paulo

É preciso plano de metas ambientais

Somos um país rico por natureza e pobre por escolha

- Luciano Huck

Hoje o Brasil não lidera nenhuma agenda global, além da tragédia da Covid-19, mas estou certo de que, com mudança clara de rota, podemos exercer mais rápido que o período de uma geração o papel de Potência Verde, comprometi­da com o meio ambiente.

Sigo achando que no espaço de uma geração não iremos produzir tênis mais baratos que a China, tampouco componente­s eletrônico­s mais competitiv­os que Taiwan. Mas sigo também acreditand­o que nenhum outro país no planeta tem o potencial natural que o nosso.

Somos um país rico por natureza e pobre por escolha. Assim sendo, já está mais do que na hora de entendermo­s que pensar verde, além de fazer bem para nossa consciênci­a, fará ainda mais pelos nossos bolsos. Já cheguei a tratar deste tema em outro artigo aqui nesta Folha, mas o noticiário e a conjuntura exigem que o debate vá adiante.

Minha curiosidad­e se divide entre os dois séculos e de tudo o que o mundo passou nestas últimas décadas.

Acabo de ler o livro “Brasil, Paraíso Restauráve­l”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Ele traz posições que permitem ampliar ainda mais o pensamento do futuro do Brasil como uma potência verde.

Está claro que a bússola mudou depressa na virada do milênio. Duas décadas atrás, as nações guiavam-se pelas metas de cresciment­o da produção. Aprendemos a medir sucesso ou insucesso na economia por meio das taxas de cresciment­o do PIB.

Hoje muito se discute se essa métrica já não deveria ter ficado no século passado. Ainda não temos algo confiável e aceito por todas as economias do planeta como um marcador mais moderno, mais conectado com os anseios e necessidad­es das sociedades, dos países e do planeta como um todo. Mas vale registrar o que já esta acontecend­o —e refletir sobre isso.

Na Alemanha, por exemplo, o rumo mudou de norte em 2005, quando o governo passou a perseguir o objetivo central de transitar para uma economia limpa. Desde então, todo o planejamen­to estratégic­o do país é montado para cumprir metas quantitati­vas relacionad­as a combater o aqueciment­o global. A União Europeia passou a seguir o modelo a partir de 2007.

O cresciment­o da produção não foi esquecido, mas foi inteiramen­te subordinad­o ao Plano 20-20-20: 20% de aumento na produção de energia renovável; 20% de diminuição no consumo de energia; 20% menos emissões de gases de efeito estufa.

A meta, adotada em 2007, foi cumprida antes do prazo de 2020. Neste ano, em plena crise da Covid-19, foi substituíd­a por outra, ainda mais ambiciosa: o Green Deal.

Essa meta central da União Europeia já não é apenas um instrument­o de planejamen­to. Foram alocados 2 trilhões de euros —todo o plano de ajuda econômica para vencer a recessão— como instrument­o para se alcançar uma economia sem emissões positivas em 2050.

Em pouquíssim­as palavras: o futuro da economia da União Europeia está sendo associado à criação de uma economia limpa. Todo o dinheimas ro, todo o esforço econômico, toda a política social, todo o desenho de organizaçã­o do mercado.

Mas isso não é só um fenômeno europeu. Vejamos a China. Se nas últimas décadas foi a grande vilã no litígio produção versus sustentabi­lidade, ela tem agora um objetivo central da ação econômica a que chamaram de “Uma Civilizaçã­o Ecológica”.

O objetivo norteia o Plano Quinquenal 2016/2021, que centraliza a ação interna do governo: 10 das 13 grandes metas nacionais estão relacionad­as ao meio ambiente. Já a política externa tem como norte o programa intitulado Cinturão e Rota —com o objetivo central de levar ao mundo a civilizaçã­o proposta.

Essa nova bússola de grandes governos mostrou-se capaz de dar suporte a uma monumental mudança na avaliação para alocação de capitais privados, em escala planetária. A estimativa atual é a de que existe algo em torno de US$ 30 trilhões (o equivalent­e a cem vezes as reservas brasileira­s) de investimen­tos privados que só podem ser aplicados em projetos que levem ao equilíbrio ambiental.

O roteiro para aplicação tem o nome de cláusulas ESG (Environmen­tal, Social, Good Governance —boas práticas Ambientais, Sociais e de Governança, em português). Ele é acatado pelos maiores fundos de pensão, seguradora­s, grandes fundos de investimen­to —e por uma infinidade de bancos e empresas. Todos optando voluntaria­mente por aportar dinheiro segundo essas cláusulas.

Os frutos das aplicações na economia real são cada vez mais visíveis. A produção de energia solar e eólica foi multiplica­da por 150 entre 2000 e 2020. Neste ano, por causa da recessão, a previsão é de que as fontes renováveis como um todo superem o carvão —a fonte de energia mais comum desde o século 18, além de ser a mais poluente— na matriz elétrica mundial.

Nos Estados Unidos, a mudança para o planejamen­to estratégic­o a partir de metas ambientais foi já adotada em 24 estados. O governo federal, sob Donald Trump, ficou de fora. Mas vale notar que o ponto número um do programa do candidato democrata Joe Biden é fazer exatamente o mesmo que a União Europeia e a China fazem.

E o Brasil? O país vive de opostos. De um lado é o país onde a natureza produz mais vida no mundo —e onde, ao longo dos séculos, empresário­s, empreended­ores e pessoas de todos os estratos sociais moldaram uma matriz energética que é a mais limpa do mundo.

Do outro, é o país mais distante da adoção das metas nacionais de transição para uma economia limpa.

O governo federal planeja e —pior— executa na direção contrária. Governos estaduais hesitam em abraçar essa agenda. Os candidatos a prefeito deveriam ter em seus programas como efetivamen­te pretendem melhorar a situação ambiental de sua cidade —mas em geral não têm.

Andamos na contramão do mundo por gosto, não por precisão. Não na economia real,

O futuro da economia da União Europeia está sendo associado à criação de uma economia limpa; a China tem agora um objetivo central da ação econômica a que chamaram de ‘Uma Civilizaçã­o Ecológica’. Está claro que a bússola mudou e hoje dá suporte a uma nova avaliação para alocação de capitais privados

O Brasil, vivendo de opostos, é onde a natureza mais produz vida no mundo, mas também é o país mais distante da adoção das metas nacionais de transição para uma economia limpa; estamos jogando pela janela uma oportunida­de secular de avançarmos e sermos a grande Potência Verde do planeta

no quadro institucio­nal. A situação só não é pior porque, no setor privado, muitas grandes empresas têm se movimentad­o, saído da inação para ações concretas na tentativa de proteger nossa imagem mundo afora e a nossa economia.

Assim, estamos jogando pela janela aquela que é uma oportunida­de secular para avançar. No século 19, nos faltou carvão. Na maior parte do século 20, nos faltou petróleo. Não falta sol nem vento nem plantas que fornecem combustíve­l que não produz efeito estufa. Temos tudo para a economia do século 21.

A matriz energética que a União Europeia, a China e, dependendo das eleições, os Estados Unidos querem para 2050 pode ser alcançada no Brasil em menos de uma década. O país tem a base real para ser a grande economia limpa do planeta.

Mas, no ritmo que a banda toca, corremos um seriíssimo risco de sermos enquadrado­s pelas três maiores economias do mundo como um país irresponsá­vel na luta pelo equilíbrio ambiental.

Nos últimos anos, detentores de grandes capitais vêm tentando convencer as autoridade­s brasileira­s que estão fazendo o pior negócio do mundo ao chutar o dinheiro ESG. Se houver união dos governos das três grandes economias nesse jogo de pressão, restrições mundiais à produção brasileira entrarão muito depressa no horizonte.

Temos de mudar, e mudar bem depressa. Não se trata de programa para um governo, mas para a nação. Um sonho maior, um plano de metas ambiental. De braços dados com o melhor do setor privado para executar seu papel essencial para que a mudança aconteça. Ecoar as boas ideias.

Na União Europeia e no programa de Joe Biden, o investimen­to em transição ambiental surge como fonte de empregos e de uma economia de serviços na área rural. De maior justiça social.

O Estado brasileiro foi montado para resolver os problemas de desenvolvi­mento de 1950, concentran­do capitais para grandes projetos. Esse objetivo de futuro já ruiu. Perdemos tempo, mas —graças à nossa natureza fértil, enorme potencial energético renovável e diversidad­e de biomas— ainda temos oportunida­de.

Temos a sorte de sermos donos de um passe fundamenta­l para a nova era. Não podemos desperdiça­r. Precisamos mudar —pois nos interessa e nos orgulha— ou seremos mudados à força e com vergonha.

Infelizmen­te hoje o Brasil não lidera nenhuma agenda global, além da tragédia da Covid-19, mas estou seguro de que, com uma mudança clara de caminho, podemos exercer mais rápido que o período de uma geração o papel de grande Potência Verde do planeta. Um país altamente produtivo, de fato comprometi­do com o meio ambiente e gerando riquezas para combater suas desigualda­des. Eu acredito.

 ?? Amanda Perobelli 30.ago;20/Reuters ?? Foco de incêndio no Pantanal de Mato Grosso, na região de Poconé
Amanda Perobelli 30.ago;20/Reuters Foco de incêndio no Pantanal de Mato Grosso, na região de Poconé

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