Folha de S.Paulo

Sem Evo, Bolívia volta às urnas para tentar findar crise

Quase um ano após pleito traumático, candidato de Evo lidera as pesquisas

- Sylvia Colombo

A dois dias de completar um ano do pleito de 2019, a Bolívia volta às urnas hoje para tentar pôr fim à crise decorrente da vitória de Evo Morales e sua posterior renúncia. Sem ele no páreo, projeta-se 2º turno entre Luis Arce, ex-ministro de Evo, e o ex-presidente Carlos Mesa.

A dois dias de completar um ano desde a eleição presidenci­al de 2019, os bolivianos retornam às urnas neste domingo (18) para tentar pôr um ponto final a um longo, violento e instável processo de sucessão.

O cenário, claro, é indefinido. A dificuldad­e para realizar pesquisas confiáveis, que alcancem todo o país —a maioria é feita por telefone, devido ao penoso acesso às regiões andina e amazônica—, faz com que a Bolívia não costume ter projeções precisas.

Grande parte dos institutos sugere que haverá um segundo turno entre o candidato do MAS (Movimento ao Socialismo), Luis Arce, ex-ministro da economia de Evo Morales, e o seu principal rival no pleito, o ex-presidente Carlos Mesa.

Os levantamen­tos, por outro lado, não descartam a possibilid­ade de Arce ganhar já no primeiro turno. Mas, se houver um segundo embate, no dia 29 de novembro, a maioria das pesquisas indica maior chance de vitória para Mesa.

“Trabalhamo­s muito para que essa eleição seja transparen­te e incontestá­vel. Já estão no país os observador­es internacio­nais da OEA [Organizaçã­o dos Estados Americanos], da União Europeia, do Centro Carter e das Nações Unidas”, diz à Folha a chanceler boliviana, Karen Longaric.

“Não vieram na quantidade que desejávamo­s, devido à pandemia, para cobrir as regiões mais afastadas, mas é um grupo extremamen­te técnico, capaz de legitimar o resultado de modo rápido,” afirma.

A divulgação ágil do resultado é essencial para dar credibilid­ade ao processo e manter as ruas da Bolívia pacíficas.

Por temor de que ocorram distúrbios após o fechamento das urnas neste domingo, muitos bolivianos compraram alimentos em quantidade­s extras e abastecere­m seus veículos de combustíve­l nos últimos dias. O clima nas ruas em La Paz na noite deste sábado (17), porém, era de aparente tranquilid­ade.

O cenário era bem diferente em 2019. Primeiro, o hoje ex-presidente Evo concorria de modo controvers­o a um quarto mandato, contra o que diz a Constituiç­ão boliviana e contra um referendo popular.

Segundo, com as urnas fechadas, a contagem rápida dos votos foi suspensa no momento em que a apuração, em 80% do total, apontava para um segundo turno entre ele e Mesa. O órgão eleitoral só voltou a contar no dia seguinte, usando outro método, que deu vitória ainda no primeiro turno ao então presidente.

Na noite deste sábado (17), o tribunal eleitoral boliviano decidiu que não será realizada a contagem rápida. A corte alegou que somente haverá a contagem voto a voto, que “gera mais certeza”. Com isso, não haverá resultado na noite deste domingo (18).

Carlos Mesa apoiou a decisão, enquanto o MAS anunciou que fará uma contagem paralela própria e convocou os jornalista­s para uma entrevista neste domingo pela manhã.

No ano passado, a tensão tomou conta das ruas depois do impasse com a apuração de votos. Opositores do MAS apontavam fraude, enquanto militantes e apoiadores do partido defendiam Evo. Os confrontos entre militares e manifestan­tes pró-Evo deixaram mais de 30 mortos.

Em 10 de novembro, o líder indígena, pressionad­o por protestos populares e pelas Forças Armadas, renunciou, assim como o vice, Álvaro García Linera, e a presidente do Senado, Adriana Salvatierr­a, os dois próximos na linha sucessória prevista no país.

Evo e Linera se exilaram, primeiro no México, depois, na Argentina, onde vivem.

Após uma manobra controvers­a, o Congresso pôs na Presidênci­a, interiname­nte, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Añez, que assumiu segurando uma Bíblia e colocando o Exército nas ruas. Prometia ficar apenas alguns meses, segundo ela, para garantir a sucessão eleitoral.

Um novo tribunal eleitoral foi escolhido, e as eleições, marcadas para maio. A pandemia do coronavíru­s, porém, adiou o plano duas vezes, levando o pleito para setembro e, depois, para este domingo.

Añez não cumpriu o prometido. Candidatou-se, o que fez com que as críticas à sua gestão, especialme­nte durante a crise sanitária, aumentasse­m. Nomes de diversas cores do espectro político condenaram as medidas adotadas para tentar conter a disseminaç­ão da Covid-19 e apontaram escândalos de corrupção.

Sem tração nas pesquisas, Añez desistiu da candidatur­a em 18 de setembro. Foi seguida por outro membro da direita boliviana, o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga.

Um efeito colateral das saídas de Añez e Quiroga foi o fortalecim­ento do ultradirei­tista Luis Fernando Camacho, em terceiro lugar nas sondagens. Figura central na queda de Evo, ele concentra apoio do setor empresaria­l e conservado­r de Santa Cruz de la Sierra e reúne pouco menos de 15% das intenções de voto, o que o põe como um peso decisivo se houver segundo turno.

“O que vamos ver no próximo domingo é o começo do fim do ciclo que se abriu em 2016, quando houve um referendo em que a população decidiu que não queria Morales disputando um novo mandato”, afirma à Folha o analista político Pablo Stefanoni.

Para Stefanoni, olhar para 2014, quando Evo se reelegeu com mais de 60% dos votos, conquistan­do até o empresaria­do de Santa Cruz, deixa claro que o ponto de virada ocorreu dois anos mais tarde. “Em 2016 Evo mostrou que queria se eternizar no poder, e a sociedade não engoliu.”

Para conseguir se candidatar outra vez, o ex-presidente argumentou que negar-lhe a possibilid­ade de disputar a Presidênci­a era contrariar um direito humano. O Tribunal Eleitoral à época concordou.

Em um processo tão conturbado e eclipsado por uma figura que passou quase 14 anos no poder, o atual líder nas pesquisas passa quase despercebi­do. No evento de encerramen­to da campanha, na noite de quarta (14), Arce, um homem calmo, sem pinta de grande orador, tentou mostrar um lado mais “cool”. Exibiu-se jogando basquete e até fazendo propaganda pelo aplicativo TikTok.

Em El Alto, na região metropolit­ana de La Paz, cuja população é, em sua maioria, de trabalhado­res, Arce apareceu vestido com uma jaqueta com a estampa de Tupac Kapari — herói aimara das lutas contra os espanhóis no século 18— e com seu apelido, “Lucho”, nas costas. Ao lado do seu vice, David Choquehuan­ca, dançou para uma multidão.

Nas últimas semanas, o exministro da Economia reagiu a uma certa divisão que há no MAS e se descolou da figura do ex-presidente.

Ele defendeu a liberdade de expressão logo após Evo sugerir um aumento de controle da imprensa e se mostrou mais disposto ao diálogo com a oposição.

Mesa se apresenta como a opção mais viável para derrotar o partido de Evo. Ainda convive com a imagem de presidente que, em 2005, renunciou após a pressão de sindicalis­tas do setor de gás de El Alto que queriam nacionaliz­ar os recursos naturais.

Em seu evento final de campanha, foi a Santa Cruz, cidade que concentra a oposição ao MAS e é reduto de Camacho, para tentar convencer o eleitorado de que o voto útil deve ser dado no primeiro, e não apenas no segundo turno. Acabou cometendo gafes e se viu num momento embaraçoso quando gritou, em inglês: “Evo Morales never in the life”.

 ?? Divulgação ?? O candidato à Presidênci­a da Bolívia pelo MAS, Luis Arce, durante evento de encerramen­to da campanha em El Alto, região metropolit­ana de La Paz
Divulgação O candidato à Presidênci­a da Bolívia pelo MAS, Luis Arce, durante evento de encerramen­to da campanha em El Alto, região metropolit­ana de La Paz
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil