Folha de S.Paulo

Atrás de fuzis, PM no Rio mata sem apreender arma

Estado usa confronto de tática para apreender fuzil, o que fez STF frear ações

- Ítalo Nogueira, Júlia Barbon e Thaiza Pauluze RIO NA MIRA

O ano de 2019, com recorde nas mortes provocadas por policiais no Rio, teve 162 delas sem apreensão de arma de fogo ou explosivo, mostra levantamen­to feito pela Folha no primeiro capítulo da série Rio na Mira, uma parceria do jornal com a organizaçã­o Conectas.

Daniel, 17, estava escondido atrás de um carro na rua Miguel de Cervantes, no Cachambi, zona norte do Rio de Janeiro, junto com dois amigos por volta das 5h45 do dia 1º de janeiro de 2019. O trio, segundo policiais, acabara de participar do roubo de um carro.

Faltavam ainda três horas para a cerimônia de posse de Wilson Witzel (PSC) no governo fluminense quando o adolescent­e —o nome pelo qual ele é identifica­do nesta reportagem é fictício, para resguardar sua família– foi atingido por um tiro nas costas.

Os cinco policiais que participar­am da primeira das 1.814 mortes em supostos confrontos no estado em 2019 relataram que, ao avistar o trio suspeito, foram alvo de disparos. A perícia da Divisão de Homicídios (DH) identifico­u uma marca de tiro na lataria da viatura que usavam.

Na delegacia, os cinco agentes disseram ter disparado, no total, 3 tiros de fuzil e 15 de pistola. Daniel foi atingido enquanto corria, indica o laudo da DH. Nenhuma arma foi apreendida com o adolescent­e. Jailson França, 23, foi preso, também sem arma. A pessoa que disparou, segundo os policiais, conseguiu fugir com a prova do crime.

Eleito defendendo a morte de criminosos com fuzis, Witzel discursou na Assembleia Legislativ­a naquele dia com a contagem de homicídios por agentes do Estado já aberta. A de apreensões de armas nessas ocorrência­s, não.

O ano com recorde histórico nas mortes provocadas por policiais teve 162 delas sem apreensão de arma de fogo ou explosivo, conforme mostra levantamen­to feito pela Folha a partir do cruzamento de microdados do ISP (Instituto de Segurança Pública) e da Polícia Civil.

O número inclui tanto ocorrência­s sem apreensão como casos em que o total de mortos é menor do que a quantidade de armas recolhidas nos supostos confrontos.

Isso representa 9% do total de óbitos pelo Estado em 2019. Outros 13% foram mortos com apreensão de fuzil, e 60% com pistola, a arma mais comum. A morte sem apreensão de arma não é, por si só, prova de um homicídio sem legítima defesa pelo policial.

Policiais relatam em alguns registros que a vítima estava junto com outra pessoa armada que fugiu. Há casos também em que, segundo os agentes, a prova do crime foi levada por outros comparsas. A ausência da apreensão, porém, levanta suspeitas em algumas ocorrência­s.

Esse é mais um dado nas dezenas de diagnóstic­os sobre a letalidade policial fluminense e suas causas, agravadas pelo apoio oficial aos confrontos por parte de Witzel, hoje afastado do governo.

Entre as razões elencadas para o Rio de Janeiro ter a polícia que mais mata e mais morre no país estão a falta de treinament­o, a ausência de aplicação dos protocolos de ação, nenhum controle interno e externo e o esgotament­o dos policiais para, ao mesmo tempo, combater facções criminosas fortemente armadas e atender ocorrência­s diárias.

A trajetória ascendente dessa estatístic­a, que durava seis anos, foi interrompi­da em junho, após decisão liminar do ministro Edson Fachin e posteriorm­ente do plenário do STF (Supremo Tribunal Federal). Ele limitou a realização de operações policiais a situações “absolutame­nte excepciona­is” durante a pandemia do novo coronavíru­s e obrigou a comunicaçã­o das ações ao Ministério Público.

As novas exigências provocaram uma queda abrupta no número de mortos por agentes do Estado, atingindo em junho o menor patamar mensal em quase cinco anos. A redução nas operações também expôs a dependênci­a das incursões ostensivas para a retirada de circulação de armas: o número de apreensões neste ano é o menor em 21 anos.

“A estratégia de segurança da polícia do Rio são as operações. Até a estratégia de prevenção é o confronto. Quando você fala com policiais sobre prevenção, eles dizem ‘a gente faz uma megaoperaç­ão’”, afirma a cientista social Terine Husek, da Uerj (Universida­de Estadual do Rio de Janeiro), que trabalhou de 2013 a 2016 na Secretaria de Segurança.

Os dados obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação também mostram o confronto como principal estratégia de desarmamen­to do crime. Quase metade das apreensões de fuzis (47%) e 31% das apreensões de pistolas em 2019 foram feitas em ocorrência­s com morte.

Pesquisado­res afirmam que ainda são raras ações de inteligênc­ia que impeçam a entrada de armas, ou sua apreensão na chegada ao estado. Citam como exemplo os 117 fuzis encontrado­s numa casa ligada a Ronnie Lessa, acusado pela morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), e outros 60 achados dentro de um aquecedor de piscina no Aeroporto do Galeão, em 2017.

A abordagem das operações policiais para combater o crime organizado, além de elevar as mortes em tiroteios, contamina a forma como a polícia atua em ocorrência­s cotidianas, gerando ainda mais vítimas, argumentam estudiosos da segurança pública.

“Com uma demanda muito grande e o efetivo pequeno, você sobrecarre­ga os policiais. Quando faz essas megaoperaç­ões, a polícia mobiliza o cara de folga para não enfraquece­r o policiamen­to das ruas. No dia seguinte, ele já vai engajar no serviço de patrulhame­nto”, diz o antropólog­o Paulo Storani, excapitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais).

“Ele queima as etapas do uso progressiv­o da força e aponta um fuzil para um camarada que bateu uma carteira. Faz isso porque está num limite de esgotament­o que não tem mais paciência para nada, só quer voltar para casa.”

Estudo de 2008 da Fiocruz já indicava o esgotament­o psicológic­o dos policiais. Mais da metade dos 1.120 policiais militares entrevista­dos na pesquisa “Missão Prevenir e Proteger” declarou que se sentia nervosa e agitada (53%), e mais de um quarto (26%) assustava-se com facilidade.

Um dos efeitos colaterais desse cenário é a morte de inocentes como o menino João Pedro, 14, baleado em maio durante uma incursão de policiais civis na casa onde brincava com os primos em

São Gonçalo, na região metropolit­ana do Rio. A investigaç­ão ainda não foi concluída —a reprodução simulada do caso foi adiada por causa da decisão do Supremo.

O Rio de Janeiro registrou no ano passado 10,5 mortes nas mãos da polícia para cada 100 mil habitantes , superando a taxa de homicídios cometidos por criminosos em São Paulo no mesmo período (7,2). É o maior índice do país, consideran­do os últimos dados disponívei­s, de 2018 , quando o Rio tinha 8,9 mortes por 100 mil e o Pará, vice líder, 7,9 por 100 mil.

Esses números levaram a polícia do RJ a ser responsáve­l por uma a cada três mortes violentas no estado em 2019. Em alguns locais, esses óbitos superaram os homicídios comuns. É o caso da área do 6º Batalhão da PM (que abrange bairros como Grajaú, Vila Isabel e Tijuca, na zona norte), onde 32 pessoas foram mortas por agentes públicos, e 27 em homicídios dolosos.

Entre os mortos pela polícia fluminense, 79% eram negros, 13% eram brancos e para 9% essa informação não foi registrada. As vítimas se concentram em regiões com atuação de facções do tráfico. Áreas de milícia, que contam com a participaç­ão de agentes do Estado, apresentam um número de casos menor.

O pedido foi feito porque o número de mortos em supostos confrontos subia mesmo com as determinaç­ões de isolamento social em razão da pandemia do novo coronavíru­s. A Corte atendeu à solicitaçã­o e impôs outras restrições, como proibir o uso de helicópter­os como plataforma de tiro e de escolas e hospitais como base operaciona­l.

Na prática, policiais militares ouvidos pela Folha relatam engessamen­to do trabalho. O comandante de um batalhão da Baixada Fluminense, que não quis se identifica­r, diz que tem cruzado os braços ao receber chamados do 190. Ele relata que todos os dias pede autorizaçã­o para incursões antes rotineiras, como retirada de barricadas, mas tem seus pedidos negados pelo comando da área.

Mesmo casos mais sérios vêm deixando de ser atendidos, argumenta: “Se tem uma mulher que precisa de medida protetiva, não posso mandar uma patrulha lá para garantir que o homem não vai bater nela. Teve um cara que tava devendo na boca, foi torturado e a gente não pôde entrar para averiguar”.

Em relatórios enviados ao STF, tanto a Polícia Militar e quanto a Civil alegaram que as restrições criam uma “zona de proteção” para as organizaçõ­es criminosas que, “em poucos meses, devem causar aumento recorde nos indicadore­s de criminalid­ade”.

A PM diz que seu protocolo visa a preservaçã­o da vida e que não busca o confronto, “sendo tal opção uma decisão do opositor das ações policiais”. Afirma também que já disponibil­iza ao Ministério Público, desde 2018, relatórios com detalhes das operações, e critica a inércia do órgão.

Antes das restrições, só a Polícia Militar fez em média 372 operações por mês neste ano. De junho até o início de outubro, foi comunicado um total de 154 ações à Promotoria, que não informou em quantas delas solicitou explicaçõe­s às duas corporaçõe­s.

A Polícia Civil, por sua vez, questiona o que seria excepciona­l “diante da realidade de guerra do Rio de Janeiro”: “Disputa territoria­l entre facções, com mortes de moradores e crianças, é excepciona­l ou normal? Assassinat­os de desafetos, esquarteja­mentos e queima de corpos são excepciona­is ou normais?”. O Supremo não definiu o que deve ser considerad­o excepciona­l.

Para justificar a necessidad­e de operações e a alta letalidade policial, a corporação diz ainda que há hoje no estado 1.413 locais controlado­s por grupos armados e, “com base na experiênci­a policial”, calcula em média 40 criminosos com pistolas ou fuzis em cada um. Aponta também a redução na taxa de homicídios, de 20% no ano passado como prova de sucesso da política de segurança.

Um estudo do Ministério Público fluminense, contudo, contesta o vínculo entre o aumento das mortes por policiais e a redução dos assassinat­os. O levantamen­to indica que a queda dos homicídios ocorreu tanto em áreas com cresciment­o como em áreas com diminuição de vítimas de agentes do Estado.

O sociólogo Daniel Hirata, do Geni/UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismo­s da Universida­de Federal Fluminense), responsáve­l por estudos que embasaram a ADPF, diz que a decisão do STF permite operações com objetivos definidos, que tendem a ter menos efeitos colaterais.

“As operações cuja motivação é o cumpriment­o de mandado judicial ou a recuperaçã­o patrimonia­l, via de regra, são menos letais do que as demais”, afirma Hirata. Ele também ressalta que os crimes contra a vida não subiram após as restrições.

A promotora Andréa Amin, coordenado­ra do Gaesp (Grupo de Atuação Especializ­ada em Segurança Pública) do

Ministério Público do Rio, afirma que a maior parte das mortes em confronto no RJ não ocorre em operações planejadas, mas em incursões em favelas com poucos policiais.

“Se você não está com uma força superior ao risco do local, você pode ter que usar, muitas vezes, uma força maior para conseguir realizar aquela missão que foi passada. A incursão não é a atividade fim da Polícia Militar, ela deve ser cirúrgica”, diz a promotora.

O Rio já foi condenado em 2017 pela Corte Interameri­cana de Direitos Humanos a estabelece­r metas e políticas para reduzir a letalidade policial. A determinaç­ão integra a sentença que condenou o Brasil pela falta de respostas a duas chacinas que deixaram 26 mortos nos anos 1990 no Complexo do Alemão.

”Os indicadore­s demonstram que o que está sendo feito é insuficien­te. As respostas não se mostraram positivas. A Polícia Civil foi lacônica. A PM apresentou uma resposta mais concreta, mas sem indicar resultados positivos”, diz a coordenado­ra do Gaesp, que prepara uma ação civil pública para buscar na Justiça o cumpriment­o da decisão da Corte.

Ela atribui a alta letalidade policial também à falta de estrutura e organizaçã­o da PM para controlar ações de seus agentes e da Polícia Civil ao investigar cada caso.

“Esse tipo de investigaç­ão [pela Polícia Civil] acontece no atacado. A forma como as pessoas são ouvidas é meio que sempre a mesma. Como a letalidade policial já acompanha a história do Rio de Janeiro, houve uma naturaliza­ção na forma de investigar.”

Amin admite também que o Ministério Público ainda não tem um modelo consolidad­o para cumprir sua atribuição de controle externo da atividade policial. O grupo especializ­ado coordenado por ela tem 14 promotores e peritos e atua apenas com autorizaçã­o do promotor natural do caso e em investigaç­ões complexas.

Entre as 1.814 mortes por policiais ocorridas em 2019, o Gaesp é responsáve­l pela apuração de 147, segundo cruzamento feito pela Folha entre todos os inquéritos da Polícia Civil e o andamento no MP-RJ.

O inquérito da morte de Daniel, a primeiro pela polícia em 2019 sem apreensão de arma, não é alvo do grupo. A investigaç­ão não fora concluída até a publicação deste texto.

Jailson França, preso na ocorrência, não foi ouvido no inquérito sobre a morte do adolescent­e. Ele declarou à Justiça, no processo em que foi condenado por roubo, que a arma levada pelo comparsa que fugiu era de brinquedo.

O juiz Roberto Brandão o condenou consideran­do sua versão falsa, tendo por base o depoimento dos policiais que o prenderam, os mesmos envolvidos na morte de Daniel.

A DH ouviu os cinco policiais e a mãe da vítima. Há nos autos indicação de que comércios e edifícios da região tinham câmeras de vigilância, mas não há referência nenhuma à busca por essas imagens.

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Tércio Teixeira/Folhapress Policiais militares fazem reforço no patrulhame­nto em torno do Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro
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Fonte: "A vitimizaçã­o policial no RJ", de Terine Husek (UERJ), com base nos números de PMs mortos em serviço e civis mortos por policiais entre 2010 e 2015
*% dos que têm informação | Fonte: ISP Fonte: "A vitimizaçã­o policial no RJ", de Terine Husek (UERJ), com base nos números de PMs mortos em serviço e civis mortos por policiais entre 2010 e 2015
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