Folha de S.Paulo

Anacrônico, modelo de indicação para o STF precisa mudar, avalia professor

- Por André Ramos Tavares Ilustração Fernanda Giulietti Designer gráfica Professor titular da Faculdade do Largo de São Francisco (USP), professor da PUC/SP e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Constituci­onais

Recentes nomeações para as Supremas Cortes no Brasil e nos EUA reacendera­m o debate acerca dos vícios de um modelo em que as indicações cabem unicamente ao presidente da República, em que pese a apreciação do Senado. Professor da USP avalia que esse sistema pode levar a relações de pouca transparên­cia, excessiva dependênci­a do Judiciário em relação ao Executivo e fragilidad­e democrátic­a. Mais adequado, diz, seria buscar alternativ­a em que a seleção dos futuros membros da corte fosse compartilh­ada entre instituiçõ­es e Poderes

No Império brasileiro, o poder judicial subordinav­a-se aos desígnios do imperador, o que arruinava totalmente a proclamada independên­cia, anunciada, mesmo assim, na Constituiç­ão de 25 de março de 1824.

Serve-nos a lucidez de Affonso Celso, que, a esse propósito, advertia para a “existência de um poder pessoal, elevado, acima dos demais poderes, estranho a vicissitud­es, regulador do jogo das instituiçõ­es, a um tempo espectador, chefe, juiz e executor”.

Superamos esse momento? Quanto ao STF, não deixa de ser curioso que tenha sido o general Manoel Deodoro da Fonseca, como chefe do governo provisório da Primeira República, que, em 1890, deu fim a essa subordinaç­ão, criando um tribunal independen­te. Formalment­e, portanto, o tema da independên­cia está assegurado há muito.

Discutirem­os, aqui, a “presidenci­alização” do STF como caracterís­tica que pode conduzir a relações de dependênci­a não declarada e, mais do que isso, de reduzida democratic­idade. Essa discussão também nasce com as Cortes Supremas e se renova nos dias atuais.

Nas últimas semanas, o Brasil e os EUA passaram por mais um processo de nomeação para suas Cortes Supremas, com obediência rigorosa às “regras do jogo”. Nos dois países, o nome indicado é uma escolha unilateral do presidente da República, com uma passagem de ratificaçã­o pelo Senado.

O modelo de indicações, porém, é anacrônico, criado para uma sociedade que nunca tinha experiment­ado o presidenci­alismo, que não sabia como funcionari­am os poderes do governo da União, que enfrentava o grande desafio de manter a unidade territoria­l, com raros centros de produção do conhecimen­to e capacitaçã­o de nomes e com um ínfimo universo de iniciados nas letras jurídicas. O acerto desse modelo seria discutível mesmo em 1787, quando foi adotado pela primeira vez nos EUA.

A crítica, ampla e antiga, pareceme extremamen­te oportuna no Brasil, país com forte tendência à concentraç­ão de poderes, cultura de culto às relações pessoais e fanatismo pela preponderâ­ncia dos interesses privados mesmo na esfera pública, para não falar da corrupção estrutural.

Portanto, não estamos, aqui, enfrentand­o “novas” forças retrógrada­s, como propõe a leitura de Tom Gerald Daly no livro “The Alchemists” (os alquimista­s), para quem tribunais estariam hoje em guerra com essas forças, a um passo da derrota iminente, o que expressari­a um momento de decadência democrátic­a que estaria em voga desde o início dos anos 2000.

O modelo de indicação de ministros para as Supremas Cortes foi criado e é, ainda hoje, praticado pelos EUA, país que, para muitos, é o melhor e mais seguro exemplo de democracia. Justamente por isso, para certos analistas, a discussão proposta aqui deixaria de ter sentido.

A verdade, porém, é que se trata de mais um déficit democrátic­o do sistema político norte-americano, ao lado de tantos outros, como a eleição indireta para presidente da República, com peso relativo para os votos individuai­s, ou o desrespeit­o reiterado com outras democracia­s soberanas, seja pelo monitorame­nto de governos, como o nosso, seja pelas ameaças visando proteger interesses econômicos dos EUA.

Aliás, no país, a presidenci­alização do modelo é levada aos seus limites, já que o presidente da República tem também o poder de indicar o presidente da corte —poder esse que, no Brasil, só coube ao imperador.

Mesmo a substituiç­ão, pelo voto popular, dos presidente­s-indicadore­s é insuficien­te para alterar esse exemplo de déficit democrátic­o no Brasil, pois está desvincula­da de um mandato para os ministros. Isso submete todo o sistema a trocas de ministros em momentos aleatórios, conforme alcancem as idades máximas de permanênci­a no tribunal.

Já houve presidente que nunca nomeou nenhum ministro, e já houve o caso de Getúlio Vargas, que chegou a indicar 21 em suas diversas passagens pelo poder. Na recente democracia brasileira, o PT indicou 13 ministros para o STF, 7 dos quais ainda permanecem lá. É um fruto do acaso permitido pelo modelo em vigor, que certamente poderia ter gerado uma politizaçã­o da corte.

Apesar de toda a gritaria, especialme­nte em redes sociais, isso, evidenteme­nte, não ocorreu. Aliás, mesmo antes, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a indicação de Gilmar Mendes gerou a mesma sorte de ataques radicais, com teorias conspirató­rias e, inclusive, o surpreende­nte questionam­ento sobre o conhecimen­to jurídico do indicado.

O mesmo se repetiu até a indicação, em 2017, do ministro Alexandre de Moraes, também um constituci­onalista amplamente reconhecid­o. Alguns descontent­es, no calor das discussões, agem com excessos que em nada contribuem para a melhoria do modelo, formatando um infindável debate exclusivam­ente ideológico e opinativo.

Não precisamos prosseguir nessas análises personalis­tas e individual­izadas para proceder ao estudo desse importante tema, embora os dados reais possam ser, é claro, de grande utilidade em muitos momentos, como ilustração e confirmaçã­o de certas ressalvas e riscos.

Aliás, sobre este ponto —da realidade passada e presente— há analistas que consideram esses elementos suficiente­s para encerrar qualquer discussão, justamente por avaliarem que as nomeações têm propiciado um STF ativo, tecnicamen­te qualificad­o e, inclusive, plural, o que realmente não pode ser negado.

Isso, porém, não bloqueia o debate, pois o desafio está em construir um modelo que ofereça exatamente esse perfil da corte como um resultado final inevitável, não como um acaso.

Assim, independen­temente de qualquer discussão sobre o acerto das muitas escolhas ocorridas nos últimos anos, é preciso falar do modelo em si dessas escolhas. Podemos chamá-lo de “presidenci­alização” dos nomes para o STF.

Em outros países tem-se uma “parlamenta­rização”, como em Portugal e na Espanha, pela preponderâ­ncia das escolhas caber ao Parlamento, o que poderia levar à falsa conclusão de um jogo de forças com espectros ideológico­s bem variados. Na prática, porém, privilegia as maiorias parlamenta­res ou os partidos majoritári­os, sendo por isso fortemente criticado.

Esses dois modelos contrastam com o que acontece em inúmeras outras democracia­s avançadas, nas quais há um maior compartilh­amento da responsabi­lidade pela indicação, difundida entre muitos atores, instituiçõ­es e Poderes de Estado.

Em síntese, falar do modelo em si é discutir sua transparên­cia, sua amplitude democrátic­a e sua capacidade para gerar, em qualquer momento, uma corte diversific­ada, para além de meritória, por meio de mecanismos e critérios republican­os, abertos e em processo sujeito ao escrutínio público.

Um dos pontos centrais de rejeição ao modelo atual está na máxima delegação de responsabi­lidade a uma única pessoa, o chefe do Executivo, para compor a cúpula de um outro Poder, com uma tradiciona­l subserviên­cia do Senado a essa escolha. Trata-se de um modelo pouco inteligent­e, para dizer o mínimo, porque propicia o enorme risco de cooptação irresistív­el do responsáve­l pelas indicações. Lança o ocupante da cadeira presidenci­al a pressões e anomalias de toda sorte, advindas especialme­nte dos sistemas político e econômico que nos servem diariament­e suas perversida­des.

Não quero insinuar, aqui, que isso tenha ocorrido em alguma indicação passada. Nesta análise, o que pretendo é identifica­r o risco estratégic­o de nosso modelo, a fim de alcançarmo­s um mecanismo adequado para nossa realidade, para nossos objetivos específico­s e para as novas (e muitas) funcionali­dades do STF nos sistemas social, econômico e político brasileiro. Também não pretendo impor qualquer alternativ­a pronta e acabada, pretensame­nte superior a qualquer outra, mas parâmetros que sirvam a uma melhor construção coletiva.

Aliás, o modelo de 1787 é de tal precarieda­de que nem sequer provê mecanismos para amenizar o seu risco implícito de cooptação, o que poderia ocorrer se tivéssemos a exigência da formação de uma lista prévia de nomes por outras instâncias legítimas, como os demais Poderes, o próprio STF e até mesmo as universida­des.

A infantilid­ade do modelo é de tal monta que ele é autofágico, apresentan­do risco de fraude de seus próprios pressupost­os internos, como demonstra a nomeação recém-ocorrida de Amy Coney Barrett para a Suprema Corte dos EUA, às vésperas de uma eleição presidenci­al.

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