Anacrônico, modelo de indicação para o STF precisa mudar, avalia professor
Recentes nomeações para as Supremas Cortes no Brasil e nos EUA reacenderam o debate acerca dos vícios de um modelo em que as indicações cabem unicamente ao presidente da República, em que pese a apreciação do Senado. Professor da USP avalia que esse sistema pode levar a relações de pouca transparência, excessiva dependência do Judiciário em relação ao Executivo e fragilidade democrática. Mais adequado, diz, seria buscar alternativa em que a seleção dos futuros membros da corte fosse compartilhada entre instituições e Poderes
No Império brasileiro, o poder judicial subordinava-se aos desígnios do imperador, o que arruinava totalmente a proclamada independência, anunciada, mesmo assim, na Constituição de 25 de março de 1824.
Serve-nos a lucidez de Affonso Celso, que, a esse propósito, advertia para a “existência de um poder pessoal, elevado, acima dos demais poderes, estranho a vicissitudes, regulador do jogo das instituições, a um tempo espectador, chefe, juiz e executor”.
Superamos esse momento? Quanto ao STF, não deixa de ser curioso que tenha sido o general Manoel Deodoro da Fonseca, como chefe do governo provisório da Primeira República, que, em 1890, deu fim a essa subordinação, criando um tribunal independente. Formalmente, portanto, o tema da independência está assegurado há muito.
Discutiremos, aqui, a “presidencialização” do STF como característica que pode conduzir a relações de dependência não declarada e, mais do que isso, de reduzida democraticidade. Essa discussão também nasce com as Cortes Supremas e se renova nos dias atuais.
Nas últimas semanas, o Brasil e os EUA passaram por mais um processo de nomeação para suas Cortes Supremas, com obediência rigorosa às “regras do jogo”. Nos dois países, o nome indicado é uma escolha unilateral do presidente da República, com uma passagem de ratificação pelo Senado.
O modelo de indicações, porém, é anacrônico, criado para uma sociedade que nunca tinha experimentado o presidencialismo, que não sabia como funcionariam os poderes do governo da União, que enfrentava o grande desafio de manter a unidade territorial, com raros centros de produção do conhecimento e capacitação de nomes e com um ínfimo universo de iniciados nas letras jurídicas. O acerto desse modelo seria discutível mesmo em 1787, quando foi adotado pela primeira vez nos EUA.
A crítica, ampla e antiga, pareceme extremamente oportuna no Brasil, país com forte tendência à concentração de poderes, cultura de culto às relações pessoais e fanatismo pela preponderância dos interesses privados mesmo na esfera pública, para não falar da corrupção estrutural.
Portanto, não estamos, aqui, enfrentando “novas” forças retrógradas, como propõe a leitura de Tom Gerald Daly no livro “The Alchemists” (os alquimistas), para quem tribunais estariam hoje em guerra com essas forças, a um passo da derrota iminente, o que expressaria um momento de decadência democrática que estaria em voga desde o início dos anos 2000.
O modelo de indicação de ministros para as Supremas Cortes foi criado e é, ainda hoje, praticado pelos EUA, país que, para muitos, é o melhor e mais seguro exemplo de democracia. Justamente por isso, para certos analistas, a discussão proposta aqui deixaria de ter sentido.
A verdade, porém, é que se trata de mais um déficit democrático do sistema político norte-americano, ao lado de tantos outros, como a eleição indireta para presidente da República, com peso relativo para os votos individuais, ou o desrespeito reiterado com outras democracias soberanas, seja pelo monitoramento de governos, como o nosso, seja pelas ameaças visando proteger interesses econômicos dos EUA.
Aliás, no país, a presidencialização do modelo é levada aos seus limites, já que o presidente da República tem também o poder de indicar o presidente da corte —poder esse que, no Brasil, só coube ao imperador.
Mesmo a substituição, pelo voto popular, dos presidentes-indicadores é insuficiente para alterar esse exemplo de déficit democrático no Brasil, pois está desvinculada de um mandato para os ministros. Isso submete todo o sistema a trocas de ministros em momentos aleatórios, conforme alcancem as idades máximas de permanência no tribunal.
Já houve presidente que nunca nomeou nenhum ministro, e já houve o caso de Getúlio Vargas, que chegou a indicar 21 em suas diversas passagens pelo poder. Na recente democracia brasileira, o PT indicou 13 ministros para o STF, 7 dos quais ainda permanecem lá. É um fruto do acaso permitido pelo modelo em vigor, que certamente poderia ter gerado uma politização da corte.
Apesar de toda a gritaria, especialmente em redes sociais, isso, evidentemente, não ocorreu. Aliás, mesmo antes, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a indicação de Gilmar Mendes gerou a mesma sorte de ataques radicais, com teorias conspiratórias e, inclusive, o surpreendente questionamento sobre o conhecimento jurídico do indicado.
O mesmo se repetiu até a indicação, em 2017, do ministro Alexandre de Moraes, também um constitucionalista amplamente reconhecido. Alguns descontentes, no calor das discussões, agem com excessos que em nada contribuem para a melhoria do modelo, formatando um infindável debate exclusivamente ideológico e opinativo.
Não precisamos prosseguir nessas análises personalistas e individualizadas para proceder ao estudo desse importante tema, embora os dados reais possam ser, é claro, de grande utilidade em muitos momentos, como ilustração e confirmação de certas ressalvas e riscos.
Aliás, sobre este ponto —da realidade passada e presente— há analistas que consideram esses elementos suficientes para encerrar qualquer discussão, justamente por avaliarem que as nomeações têm propiciado um STF ativo, tecnicamente qualificado e, inclusive, plural, o que realmente não pode ser negado.
Isso, porém, não bloqueia o debate, pois o desafio está em construir um modelo que ofereça exatamente esse perfil da corte como um resultado final inevitável, não como um acaso.
Assim, independentemente de qualquer discussão sobre o acerto das muitas escolhas ocorridas nos últimos anos, é preciso falar do modelo em si dessas escolhas. Podemos chamá-lo de “presidencialização” dos nomes para o STF.
Em outros países tem-se uma “parlamentarização”, como em Portugal e na Espanha, pela preponderância das escolhas caber ao Parlamento, o que poderia levar à falsa conclusão de um jogo de forças com espectros ideológicos bem variados. Na prática, porém, privilegia as maiorias parlamentares ou os partidos majoritários, sendo por isso fortemente criticado.
Esses dois modelos contrastam com o que acontece em inúmeras outras democracias avançadas, nas quais há um maior compartilhamento da responsabilidade pela indicação, difundida entre muitos atores, instituições e Poderes de Estado.
Em síntese, falar do modelo em si é discutir sua transparência, sua amplitude democrática e sua capacidade para gerar, em qualquer momento, uma corte diversificada, para além de meritória, por meio de mecanismos e critérios republicanos, abertos e em processo sujeito ao escrutínio público.
Um dos pontos centrais de rejeição ao modelo atual está na máxima delegação de responsabilidade a uma única pessoa, o chefe do Executivo, para compor a cúpula de um outro Poder, com uma tradicional subserviência do Senado a essa escolha. Trata-se de um modelo pouco inteligente, para dizer o mínimo, porque propicia o enorme risco de cooptação irresistível do responsável pelas indicações. Lança o ocupante da cadeira presidencial a pressões e anomalias de toda sorte, advindas especialmente dos sistemas político e econômico que nos servem diariamente suas perversidades.
Não quero insinuar, aqui, que isso tenha ocorrido em alguma indicação passada. Nesta análise, o que pretendo é identificar o risco estratégico de nosso modelo, a fim de alcançarmos um mecanismo adequado para nossa realidade, para nossos objetivos específicos e para as novas (e muitas) funcionalidades do STF nos sistemas social, econômico e político brasileiro. Também não pretendo impor qualquer alternativa pronta e acabada, pretensamente superior a qualquer outra, mas parâmetros que sirvam a uma melhor construção coletiva.
Aliás, o modelo de 1787 é de tal precariedade que nem sequer provê mecanismos para amenizar o seu risco implícito de cooptação, o que poderia ocorrer se tivéssemos a exigência da formação de uma lista prévia de nomes por outras instâncias legítimas, como os demais Poderes, o próprio STF e até mesmo as universidades.
A infantilidade do modelo é de tal monta que ele é autofágico, apresentando risco de fraude de seus próprios pressupostos internos, como demonstra a nomeação recém-ocorrida de Amy Coney Barrett para a Suprema Corte dos EUA, às vésperas de uma eleição presidencial.