Folha de S.Paulo

Problema de origem

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Devo sofrer de alguma perversão, pois adoro assistir a julgamento­s do STF e a sessões legislativ­as. Juntando as duas taras, vi bons pedaços da sabatina senatorial da juíza Amy Coney Barrett, indicada por Trump para ocupar uma vaga na Suprema Corte dos EUA.

Uma discussão interessan­te que surgiu ali é sobre como uma constituiç­ão deve ser interpreta­da. Barrett se declara originalis­ta. Para ela, constituiç­ões são documentos estáticos que devem ser lidos textualmen­te e de acordo com o significad­o que os conceitos tinham na época em que foram escritos. Contrapõem-se a essa corrente aqueles que acham que cartas são organismos vivos, cujo sentido é atualizado a cada nova geração de intérprete­s.

Minha simpatia está com o segundo grupo, mas daí não decorre que a preocupaçã­o que move os originalis­tas seja infundada. Eles escolhem esse caminho para evitar que juízes introduzam preferênci­as pessoais e políticas na interpreta­ção das constituiç­ões, o que anularia eu caráter de contrato fundador.

Receio que a cautela dos originalis­tas não baste para funcionar como um escudo contra as idiossincr­asias de juízes singulares, mas seja forte o suficiente para tolher a inovação social.

Um bom exemplo, da própria Constituiç­ão dos EUA, é o dispositiv­o que proíbe “punições cruéis e incomuns”. Se tomarmos a expressão com o significad­o que tinha no final do século 18, aí não há o que objetar na pena de morte. Mas, se atualizarm­os a significaç­ão de “cruel e incomum”, fica mais difícil justificar que os EUA ainda adotem a pena capital, já banida em quase todas as democracia­s.

O problema com o originalis­mo é que, embora pretenda nos livrar de vieses políticos de juízes, ao amarrar a inteligênc­ia do texto constituci­onal ao passado (remoto no caso dos EUA), ele acaba consagrand­o o conservado­rismo. Gostemos ou não, sociedades evoluem e constituiç­ões precisam estar em sintonia com isso.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil