Folha de S.Paulo

Música para ouvidos calafetado­s

- Ruy Castro

Um fã brasileiro do guitarrist­a americano Eddie Van Halen, morto na semana passada aos 65 anos, contou emocionado que, aos 16 anos, em 1983, foi vêlo tocar no Maracanãzi­nho. Vêlo, não ouvi-lo. O volume de som, disse, era literalmen­te ensurdeced­or: “Enrolei a camisa na cabeça para proteger os ouvidos e, mesmo assim, fiquei surdo por uma semana. Foi inesquecív­el!”.

Em outro momento, atribuiu a Van Halen “técnicas de guitarra só compreensí­veis se você o visse tocando —só de ouvir era impossível”. Donde, se o importante era o visual, escutar ou não seria indiferent­e. Van Halen era famoso por dar saltos acrobático­s no palco, ao mesmo tempo em que, segundo outro fã, criava “técnicas incríveis para extrair novos timbres, sons e notas”. Deduzo que tais qualidades musicais eram apenas presumidas, já que suas plateias, extáticas pelos saltos e com os ouvidos calafetado­s pelas camisas, não o escutavam direito.

Preocupant­e também devia ser a surdez que se estendia pela semana seguinte. Com ela, a turma ficava impedida de escutar discos do próprio Van Halen e de outros artistas que admirasse. No caso de Van Halen, isso não era problema, já que ouvilo sem vê-lo tornava-o incompreen­sível, e isso explica que, ao contrário de seus colegas, ele não tenha vendido 300 milhões de discos. O disco, pelo visto, não era o seu veículo. Pena que a surdez que provocava nos garotos impedisse que esses escutassem guitarrist­as menos agressivos e, talvez, mais musicais.

Van Halen não foi o único virtuose da guitarra. O brasileiro Bola Sete, radicado nos EUA, tocava a sua nas costas e, um dia, alguém viu Baden Powell tirar sons do violão sem desencapá-lo daquele estojo de lona. Mas não faziam disso a maior atração de seus shows.

Meu favorito no gênero ainda é Jimi Hendrix. Certa vez, no palco, ele botou fogo em sua guitarra. Com aquela, pelo menos, nunca mais tocou.

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