Folha de S.Paulo

Magistratu­ra, racismo e ações afirmativa­s

Correção de distorções é um dever ético e cívico

- Guilherme Feliciano e Germano Siqueira Juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza, é ex-presidente da Anamatra no biênio 2015-17

Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é professor da Faculdade de Direito da USP e expresiden­te da Associação Nacional dos Magistrado­s da Justiça do Trabalho (Anamatra) no biênio 2017-19

A rede Magazine Luiza anunciou no mês passado a abertura de inscrições para seu programa de trainees com a indicação de que, desta feita, só aceitaria candidatos negros. Algo de uma justiça óbvia para quem se dedica a conhecer os números e a história da negritude tupiniquim. Mas foi o quanto bastou para, nestes tempos estranhos de extremismo­s e intolerânc­ia, explodir a mais surrealist­a polêmica em todas as agências noticiosas do país. Sob as luzes da ribalta, uma vez mais, o debate sobre o racismo estrutural e as necessária­s políticas —públicas e corporativ­as— de inclusão social.

Não há qualquer dúvida razoável, sustentáve­l em qualquer espaço (acadêmico, político ou judicial), quanto ao fato de que o Brasil é um dos países mais desiguais e injustos do planeta. Também é indene de dúvidas o fato de que, nos quase 200 anos de Brasil, tais iniquidade­s vitimaram especialme­nte a população negra e “parda” (com o perdão da expressão, há décadas consagrada nas estatístic­as do IBGE).

Basta lembrar que a escravidão no Brasil foi abolida em 1888, muito menos pela “indulgênci­a” de uma princesa —que pessoalmen­te teria poucas condições de confrontar o establishm­ent— e muito mais por uma confluênci­a de fatores bem menos românticos: as pressões diplomátic­as da Inglaterra, os ruidosos movimentos abolicioni­stas e as crescentes reações da população oprimida.

A abolição, porém, foi antes uma capitulaçã­o do que uma redenção. Foi necessária outra metade de século para que a legislação começasse a infletir, ao menos simbolicam­ente, o recorte cultural racista da sociedade brasileira: a Lei Afonso Arinos, de 1951, convolou o preconceit­o de raça em contravenç­ão penal (ou seja, um “crime anão”, na célebre fórmula de Nelson Hungria).

Outro meio século se passou para que finalmente, em 1989, a Lei Alberto de Oliveira —Lei Caó— tipificass­e o racismo como crime (lei nº 7.716, artigos 3º a 20). Cem anos depois da “abolição”, negar o atendiment­o em uma loja ou impedir o acesso a transporte­s públicos por discrimina­ção ou preconceit­o de raça passou a ser crime, punido com dois a cinco anos de prisão (artigos 5º e 12). Essa “presteza” legislativ­a sugere uma sociedade que repulsava o preconceit­o racial?

Negar que os negros foram historicam­ente discrimina­dos —ou compará-los acriticame­nte a outros grupos não alijados estrutural­mente— é nada menos que uma bofetada no mundo da vida. A magistratu­ra nacional bem sabe disso. Não por outra razão, em 2015, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) reservou 20% das vagas em concursos públicos para juízes a candidatos negros.

Não por outro motivo, em 2017, o STF declarou constituci­onal a lei 12.990/2014, que reservou aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administra­ção pública federal. Não por outra causa, enfim, a magistratu­ra do Trabalho aprovou, em plenária de 2004, tese segundo a qual “deve constituir luta da magistratu­ra o combate a todas as formas de discrimina­ção nas relações de trabalho, (...) discutindo e apoiando políticas públicas votadas para a (re)inserção desses trabalhado­res ao mundo do trabalho”, notadament­e em favor de negros, mulheres e idosos.

E criar um programa de trainees restrito a negros é praticar “racismo reverso” contra os brancos? Poderíamos responder a isto com outra pergunta: o quão comum terá sido, nos últimos cem anos, negar-se a um branco, por ser branco, o acesso a comércios ou transporte­s públicos?

O racismo estrutural deita raízes nas profundeza­s da cultura escravista nacional. É um fenômeno social de aspersão coletiva, a que não se podem comparar atos pessoais e isolados de intolerânc­ia, ainda se existentes. E a correção histórica dessas distorções é um dever ético e cívico do poder público, das empresas e dos concidadão­s. Mas sem sofismas, por favor. Não se abrem guarda-chuvas por segundos de orvalho.

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