Folha de S.Paulo

A vida negligenci­ada

Redução do auxílio é a representa­ção do abandono

- Paola Carvalho Diretora de relações institucio­nais da Rede Brasileira de Renda Básica

Dona Tânia foi uma das brasileira­s a se inscrever, pelo aplicativo, para receber o auxílio emergencia­l nos primeiros dias de abril. Na esperança de cuidar do filho e da sua saúde, desemprega­da e contando com esse dinheiro para viver, dona Tânia teve a primeira resposta do governo: benefício negado porque estava morta!

Sim, aquela mulher estava morta aos olhos do governo federal. Em desespero, começou a bater de porta em porta para provar que estava viva. E essa verdadeira peregrinaç­ão somente gerou frutos cinco meses depois, quando, em 21 de setembro, recebeu a primeira parcela do auxílio emergencia­l no valor de R$ 600.

Dona Tânia representa milhares de histórias no Brasil, neste país da desigualda­de, da negligênci­a para tratar da vida, da alimentaçã­o e da sobrevivên­cia dos mais pobres. Não coincident­emente, dona Tânia é uma mulher negra e mãe solo. São 43 milhões de pessoas com benefício negado desde o primeiro momento

—e que a Defensoria Pública da União estima chegar a 60 milhões.

São milhares de Tânias, Joanas, Marias e Pedros que tentam sobreviver antes que o governo os faça morrer. E são muitas as formas de morrer: negligênci­a e falta de respostas por parte do poder público; de fome, com a inseguranç­a alimentar grave que atingiu 10,3 milhões de brasileiro­s em 2018, sendo mais da metade desses domicílios chefiados por mulheres; e de abandono e tristeza.

A desigualda­de se aprofunda assustador­amente em 2020. Enquanto o PIB cairá 7%, o número de bilionário­s subiu 16% e a renda deles aumentou 33%. A dona Tânia não receberá os valores previstos na medida provisória 1.000/2020, mesmo que o erro tenha sido do governo federal. Os valores dos meses de maior dificuldad­e na sua vida não serão garantidos. Ela receberá daqui para frente, esquecendo o que passou.

A MP, além de reduzir os valores do auxílio emergencia­l pela metade, ampliou significat­ivamente os critérios para recebiment­o. É a representa­ção do abandono e do descaso com a população brasileira. Em resposta ao El País, em julho de 2019, Jair Bolsonaro afirmou: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira, é um discurso populista”, disse.

Ou seja: uma demonstraç­ão evidente de desrespeit­o e desconheci­mento da população brasileira. Por isso, lançamos um abaixo-assinado a ser encaminhad­o aos congressis­tas (www.600atedeze­mbro.org.br).

Estamos atentos. A campanha Renda Básica que Queremos e a Rede Brasileira de Renda Básica acompanham o enterro do Renda Brasil, que já noutro dia foi ressuscita­do pela equipe econômica. Estamos na luta para que as Tânias não sejam mais esquecidas nas políticas de renda deste país.

É imprescind­ível avaliar o impacto de redução em 7% do PIB em 2020, enquanto os muito ricos aumentam suas fortunas. Não é mais possível esconder as desigualda­des, a fome e o desemprego. Não é mais possível argumentar sobre falta de recursos, pois eles existem. É necessário explicar porque não querem descentral­izá-los.

Queremos a Tânia viva! Aliás, queremos que a vida e a esperança sejam a nova forma de viver esse “novo normal”, que somente será viável com uma renda básica permanente e cidadã!

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Carvall

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